Economia e moral
O dilema social e humano provocado pelo neoliberalismo e a globalização financeira dos mercados levou juristas, estadistas e filósofos a falar em novo contrato social planetário, com uma mudança de função das agências multilaterais e a refuncionalização das riquezas de base da humanidade
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1. A primeira coisa a ser dita é o aparente paradoxo entre dois termos que originalmente se contrapunham: "Economia" e "Moral". Se pensarmos a junção desses dois termos - na perspectiva dos antigos - eles não poderiam estar juntos. A expressão "Economia" designa inicialmente a ciência do lar (oikos), da vida privada, das atividades práticas, úteis, comezinhas e corriqueiras, afetas às mulheres, criados, escravos e as crianças. Os gregos mantiveram sempre uma distância intransponível entre o universo do "oikos" e a "agora". Deixando as atividades da casa, da subsistência material para pessoas socialmente desclassificadas ou destituídas de cidadania. Não era moralmente correto os cidadãos se ocuparem com as tarefas domésticas (ou trabalharem). Essas eram atribuídas aos escravos e as mulheres ou aos estrangeiros. O mundo social e público era o "lócus" dos cidadãos, dos patrícios, dos donos de terra e de escravos. A atividade precípua desses privilegiados era o interesse político, da polis, da cidade, do público. A política não devia se misturar com os negócios, as tarefas do "oikos", da subsistência material, do lucro, do interesse particular.
2. A destruição dessa separação ou divisão social de trabalho veio com a fase imperialista da cultura grega e o fim da cidade-estado. O interesse pela conquista e a escravidão submeteram a "eticidade" do mundo grego ao mundo do poder e do dinheiro, transformando a democracia ateniense numa sociedade de senhores e escravos, não mais de cidadãos e suas famílias particulares. A passagem da cidade-estado para o Império destruiu a democracia ateniense e deu início aos demagogos e tiranos. E o apogeu da assembleia de homens livres e iguais (a ágora) foi substituído por uma comunidade de escravos e senhores.
O mundo antigo não foi um mundo que valorizou o mercado. Pelo contrário, valorizou a política e o interesse público. A aristocracia romana só se interessou pela guerra como manifestação de seu poder. Não pelos bens móveis e imóveis amealhados pela conquista militar.
3. A Idade Média - com a ruralização da vida social e a invasão dos bárbaros - não foi muito propícia às atividades comerciais ou econômicas. A principal agência do pensamento ideológico e moral - a Igreja de Roma - elaborou uma modalidade de filosofia inteiramente avessa ao lucro, à mercancia ou à usura. Os teólogos cristãos falavam no "preço justo" e na condenação da avidez ou cobiça pelo acúmulo de bens materiais, tratando o negócio privado como pecado ou de pouco interesse pela vida extraterrena e a salvação da alma. Considere-se também que o ideal cosmopolita do império religioso da Igreja romana dificultava a formação de mercados nacionais ou locais, com a proteção e a segurança dos comerciantes: sobretudo diante do complexo sistema tributário das cidades medievais, o valor da moeda e as dificuldades ao livre movimento das mercadorias.
A valorização da bolsa ou do comércio entre cidadãos privados surge com a época moderna, inaugurada com o renascimento e o ciclo das grandes navegações.
4. Aí foi quando o messianismo religioso e cristão uniu-se à expansão colonial, através do saque, da escravidão, da conquista territorial e a expropriação de riquezas. Foi aquilo que Marx denominou de “acumulação primitiva do capital" e a teoria moderna da colonização. Abriu-se no interior do projeto colonial europeu uma imensa controvérsia teológica sobre o direito de escravidão e exploração dos indígenas da América, contra a posição dos papas em favor do projeto colonizador. A teologia foi transformada em justificação moral e religiosa da cupidez e voracidade dos empreendimentos comerciais, a ponto de geral uma teologia da conquista. A transformação do "homos politicus" no "homos economicus" que levou a formação da economia política, inicialmente fisiocrática, para a economia política liberal, totalmente liberta de quaisquer constrangimentos éticos ou religiosos é produto da época moderna, das "robinsonadas" dos autores burgueses, como Adam Smith, que viam no livre comércio entre as nações do mundo, a mola propulsora da riqueza da nações, tanto quanto a divisão de trabalho interna aos países capitalistas e aquela entre nações colonizadoras e nações coloniais. É a época do liberalismo triunfante, da burguesia industrial e comercial , e daquilo foi chamado a época do "individualismo possessivo", do auto-interesse, e da política como maximização dos interesses individuais. Neste ponto, a economia transforma-se numa espécie de religião. O lucro pessoal e material num modo de devoção religiosa. De pecado em virtude teológica e moral. Surge, assim, a reforma luterana e a ética puritana do trabalho, em que a prosperidade material do indivíduo é uma direta manifestação da vontade de Deus na vida do crente e piedoso. Ninguém mais do que a revolução teleológica da reforma protestante contribuiu mais para unir, santificar, fundir e aproximar a "Moal", da "Economia" capitalista, a ponto de um sociólogo como Max Weber escrever um tratado sobre esse casamento.
5. A partir daí, o auto-interesse (os interesses materiais e econômicos dos indivíduos) foram entronizados como a base da civilização ocidental, sob as bençãos de Deus e seus ministros. O pecado e o vício estão associados à pobreza, à negligência, à preguiça e à ociosidade. Deus abençoa quem trabalha e acumula bens. Virtuoso é o homem industrioso, trabalhador e próspero. Naturalmente essa ética individualista alavancou e muito o mercado, o lucro e os negócios privados. E transformou a política num balcão de negócios, no dizer da filósofa Hannah Arendt. O liberalismo é a doutrina, por excelência, da economia moral, por santificar o mercado e a razão econômica. E erigir o acúmulo dos bens em critério de verdade da ética e da salvação da alma. ao contrário da ética medieval que condenava a mercancia e o acúmulo de bens em favor da pobreza e o desprendimento das coisas do mundo (ascetismo).
6. O contrato a essa filosofia econômico-moral veio com o advento do "anti-valor", com as políticas públicas redistributivas do Estado de bem-estar social e suas prestações de serviço. O estado social-democrático, do pós guerra, mudou essa filosofia individualista. E inaugurou uma forma de acumulação de capital, que primava pela reprodução da força de trabalho, através do seguro social e a melhoria das condições de vida dos trabalhadores. E naturalmente, com o advento dos países socialistas que combatia abertamente o mercado, a propriedade privada e a mercancia. Houve uma mudança no conceito de economia moral, para uma economia social e solidária, voltada agora não para o lucro privado, mas para o bem-estar da sociedade.
7. A economia de Wellfare foi confrontada pela crise dos anos 70 e a vinda do neoliberalismo, a redução do Estado e das prestações sociais. Mas uma vez, o interesse do mercado desregulamentado, sem a intervenção reguladora do Estado, e o combate ao déficit das contas públicas mudou por completo a relação entre moral e economia, estabelecendo um tipo de darwinismo social, a luta de todos contra todos, onde a sobrevivência do mais forte virou lei. Esta mudança transtornou as relações sociais e a relação entre os mais ricos e os mais pobres, aumentou o grau de exploração econômica e exclusão social.
Este quadro foi agravado com a globalização financeira dos mercados nacionais e a quebra da autonomia dos estados-nação, sobretudo em sua capacidade de fazer política de forma soberana, tornando algumas nações em meras plataformas de exportação de mercadorias de outras nações ricas e poderosas.
8. O dilema social e humano provocado pelo neoliberalismo e a globalização financeira dos mercados levou juristas, estadistas e filósofos a falar em novo contrato social planetário, com uma mudança de função das agências multilaterais e a refuncionalização das riquezas de base da humanidade. Essa discussão juntou-se ao foro social mundial, a nova sociedade civil planetária e aos movimentos social em-rede, antiglobalização. Estes movimentos colocaram em pauta uma nova economia moral, uma nova arquitetura do sistema financeiro internacional, uma nova moeda, uma economia solidária, na verdade, um novo modelo de civilização distinto da civilização capitalista.
Conclusão
Autores como Boaventura de Souza Santos, Ricardo Petrella, Manuel Castelll, Maria da Glória Gohn, Ise Scheren Warrent, Diego Nieto já vem reescrevendo a história contemporânea na perspectiva de uma verdadeira economia moral da felicidade, igualdade e solidariedade. São perspectivas de análises calcadas numa globalização contra-hegemônica e numa cidadania em rede. Mas essa economia nada terá em comum com a outra. Falará em outra linguagem, mostrando que outro mundo é possível.
Bibliografia
Boaventura santos. A gramática da nossa epoca. Sao paulo Cortez
Marua Glória Gohn. Os movimentos sociais no terceiro milenio. Sao paulo. Cortez
Manuel Castell. A sociedade em rede. Rio. Paz e terra
Ilse scherem warrant. A cidadania em rede. Sao paulo, hucitec
Ricardo Petrella. Para um novo contratro planetário . Paris, Maniere de Voir. Le monde diplomatique.
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