É preciso despolitizar a luta contra o Covid-19

O clã Bolsonaro nunca fez questão de mostrar apreço pela ciência, e muito menos pela democracia. Disso todos nós já sabemos. Mas sua peroração pró-cloroquina tem muito a dizer sobre seus métodos de fazer política

(Foto: Reuters | Reprodução)


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Artigo escrito com Fabiano Silva dos Santos, advogado mestre e doutorando em Direito

Existem dezenas de estudos sobre a eficácia da cloroquina contra a Covid-19. Poucos, entretanto, foram finalizados. E mesmo em relação a esses, os resultados não foram conclusivos.

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Essa é a palavra da ciência: não há garantia de que a droga funcione, nem ao menos de que seja segura. Vários países do mundo, inclusive, suspenderam sua utilização.

Apesar disso, por falta de outra abordagem terapêutica, muitos médicos têm feito prescrições do medicamento, o que até pode ser razoável em um ambiente milimetricamente calculado. Neste cenário, é fundamental, evidentemente, que se estude os expressivos efeitos colaterais deste medicamento frente a eventuais comorbidades.

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Discussão técnica. Científica. Com rigor, método e metodologia.

Por outro lado, quando o presidente da República ocupa espaço em cadeia nacional de rádio e televisão para vender uma esperança de cura baseada em experiências incompletas, a história é outra...

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Mais do que mera irresponsabilidade, este ato pode trazer consequências muito graves e irreversíveis.

O Presidente parece não se dar conta disso...

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Determinou, inclusive, que o Exército Brasileiro produzisse grandes quantidades deste duvidoso “remédio”. Em coro com o Presidente americano, deus ares milagrosos à suposta descoberta.

Há paralelos na história recente da humanidade...

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No final da década 50, quando uma outra gripe, a Influenza, ameaçava a Europa, um laboratório farmacêutico alemão ganhou mercado com um fármaco antigripal que parecia inovador e adequadamente apropriado para o enorme desfio que se apresentava.

Mais tarde, a mesma droga foi reapresentada como um poderoso sedativo e tornou-se um sucesso de vendas em vários países.

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Até que começaram a surgir relatos preocupantes sobre crianças que nasceram com graves más-formações congênitas.

São os filhos da Talidomida, a droga que nasceu para tratar de resfriados e que acabou ganhando outras utilidades sem estudos que atestassem sua segurança.

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São quase 10 mil crianças atingidas, cujas mães fizeram uso da droga durante a gestação. A tragédia só não foi maior porque o governo americano não autorizou o uso do medicamento, alegando que não existiam evidências científicas de que seu uso era realmente seguro.

Entre a ciência e a promessa, com sinais muito confusos e até mesmo contraditórios, Bolsonaro se posicionou como mascate da esperança.

Além de uma gripe ameaçadora e de um medicamento usado de forma experimental, há um outro ponto dessa história que se cruza com a da Talidomida: a poderosa “arma” da propaganda.

A indústria investiu pesado em mídia para demonstrar que a talidomida era segura. No Brasil, a droga foi apresentada em anúncios dos jornais de maior circulação, em folhetos e em amostras para médicos. Muita propaganda, pouca ciência e pelo menos 10 mil vítimas. Até agora, a cloroquina de Bolsonaro é isso: muita propaganda , mais dúvidas do que certezas e nenhuma conclusão científica. O que virá a seguir, ninguém pode efetivamente dizer.

O clã Bolsonaro nunca fez questão de mostrar apreço pela ciência, e muito menos pela democracia. Disso todos nós já sabemos.

Mas sua peroração pró-cloroquina tem muito a dizer sobre seus métodos de fazer política.

O exemplo é fresquinho.

Nessa semana, um representante do clã foi ao Twitter para ”denunciar” que a ex-primeira dama Marisa Letícia teria 256 milhões de reais  investidos em CDBs do Banco Bradesco.

Seria cômico se não fosse repugnante.

Mais uma vez atentaram contra a memória de alguém que em vida já havia sentido o peso da injustiça ...

Segundo os combativos advogados que atuam no caso, Valeska Teixeira e Cristiano Zanin, os bens que integram o espólio de D. Marisa, e que já deveriam ter sido partilhados inclusive, “foram apresentados nos autos do inventário e constam das últimas declarações protocoladas em 02/03/20020, nos termos da lei. O despacho proferido em 06 de abril faz referência, por equívoco, a escrituras de debêntures que o próprio Juízo reconhece não ter relação com os bens a partilhar (“não há debêntures a partilhar, quer em nome da falecida, quer em nome do inventariante”) “ .

Os carneirinhos do rebanho digital do “gabinete do ódio” replicaram a informação sem fazer questionamentos, até que o assunto se tornou um dos mais discutidos nas redes sociais por alguns momentos. Os tais milhões não existem, e jamais existiram, mas qual dos “Bolsonaros” se importa realmente com a verdade?

Se o pai tem a ousadia de ocupar a TV para destilar ódio,  contrariar as orientações da Organização Mundial de Saúde e para pregar ao Brasil o uso de um tratamento medicamentoso experimental, o que se pode esperar de sua entourage ?

Provavelmente, as contas dos familiares do ex-presidente Lula já foram muito mais estudadas do que a cloroquina de Bolsonaro. Há décadas, o Ministério Público, inúmeras CPIs, a Força-tarefa da Lava Jato e a própria Polícia Federal em diversas outras operações vasculham documentos e informações. Pirotecnias dos mais variados tipos e espécies não foram capazes, no decorrer dos últimos anos, de dar suporte probatório mínimo para as criativas teses de acusação...

Entretanto, com o avanço da politização do judiciário e da judicialização da política, a condenação criminosa do ex-presidente Lula o levou indevidamente à prisão por longos e sofridos 580 dias.

A esperança é que o episódio possa, de alguma forma, promover uma ampla e profunda reforma no nosso Sistema de Justiça.

Bolsonaro precisa se informar sobre a Talidomida e sobre como alguns funcionários do serviço de saúde dos Estados Unidos foram fundamentais para evitar uma tragédia ainda maior. Ele poderia aprender com a história e talvez assim acabasse convencido de que é preciso ter mais cautela quando a saúde de uma nação está em sua mãos.

Mas talvez ele até já conheça essa história. Talvez isso seja tudo que ele possa dar em uma crise... comportar-se como o garoto propaganda de um remédio em um programa de auditório...

No Brasil, o desafio é combater o vírus , o ódio , a intolerância e a idiotice.

Tarefa árdua, sobretudo por contar com a militante e disciplinada oposição do chefe da nação.

Oremos!!!

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