É possível salvar a democracia brasileira?

Na realidade, a ameaça mais profunda e estrutural à democracia tange à hegemonia político-ideológica do neoliberalismo

Lula
Lula (Foto: Reprodução)


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Marcelo Zero

Lula foi eleito com um grande objetivo: salvar a ameaçada democracia brasileira.

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Com efeito, a frente política que se criou em torno de Lula visou, e visa, derrotar o bolsonarismo neofascista e defender a institucionalidade democrática do Brasil contra uma agenda claramente golpista e autoritária.

A duras penas, e mediante um resultado eleitoral bastante apertado, conseguiu-se obter um primeiro passo nessa direção: Bolsonaro foi derrotado e, aparentemente, foram afastadas as perspectivas imediatas de um golpe de Estado no Brasil. 

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Ao que tudo indica, Lula deverá tomar posse em 1º de janeiro, mesmo com as sérias ameaças de atos terroristas.

Entretanto, é evidente que isso não basta para dar solidez ao processo democrático brasileiro, tão fragilizado após o golpe institucional de 2016.

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É necessário considerar, sobretudo, que o bolsonarismo, embora conjunturalmente derrotado, continua vivo. Fincou bases robustas no Congresso, tem apoio da extrema-direita mundial, controla segmentos expressivos das redes sociais, é hegemônico nas forças de segurança e tem muitos seguidores fanáticos, dispostos a tudo.

Não há dúvida que, a partir de 1º de janeiro, essa horda passará a fazer oposição feroz ao governo Lula, na expectativa de desestabilizá-lo logo em seus primeiros meses. 

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Porém, o bolsonarismo não se constitui na principal ameaça à democracia brasileira, embora seja ele a face mais imediata e dramática dessa ameaça.

Na realidade, a ameaça mais profunda e estrutural à democracia tange à hegemonia político-ideológica do neoliberalismo.

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Com efeito, apesar de historicamente se autoproclamar um defensor da democracia e das “liberdades”, o neoliberalismo é, em última instância, incompatível com sistemas realmente democráticos.

Em primeiro lugar, o neoliberalismo é incompatível com a democracia porque ele mina as bases sociais do sistema democrático. Não há democracias substantivas no mundo sem uma classe média robusta, sem uma classe trabalhadora organizada e sem um Estado de Bem-Estar minimamente consolidado. As chamadas liberdades civis e políticas fundam as democracias, mas elas só se aprofundam e se consolidam no contexto da afirmação de direitos sociais e econômicos amplos, que asseguram, na prática, a fruição das liberdades e direitos básicos.  

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Entretanto, com o predomínio do neoliberalismo as economias tendem a produzir grandes desigualdades, a enfraquecer a classe trabalhadora, a empobrecer as classes médias, a gerar empregos de má-qualidade, a solapar o Estado de Bem-Estar e a desconstruir direitos duramente conquistados. Esse quadro tem profundas implicações negativas nos sistemas de representação das democracias.

Muitos autores, como Thomas Piketty, Cristian Laval, Noam Chomsky e Joseph E. Stiglitz, só para citar os mais conhecidos, destacam essa relação estreita entre o capitalismo “financeirizado” e desregulado, típico do neoliberalismo recente, e o aumento das desigualdades, a erosão dos Estado de Bem-Estar e a crise política que atinge em cheio as democracias e a legitimidade dos sistemas de representação política. Obviamente, são esses fatores que explicam também a eclosão de forças de direita e de extrema direita em todo o mundo.

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Mas, em segundo lugar, o neoliberalismo mina também a democracia, no plano ideológico, simbólico e jurídico.

Nesse plano, o neoliberalismo visa construir politicamente as sociedades com base no modelo do mercado. Tal modelo é visto, em tal contexto, como o único que tem “viabilidade técnica e racionalidade”. Quaisquer demandas ou políticas que ultrapassem a lógica estreita desse modelo são desqualificadas e deslegitimadas como irracionais e populistas. 

Assim sendo, há uma tendência, nos regimes neoliberais, de esvaziamento progressivo do poder dos representantes eleitos e da transferência das decisões públicas para gestores e/ou atores de mercado, no quadro de um Estado meramente gerencialista. 

Isso tende a criar uma blindagem jurídico-política para as políticas neoliberais, vistas como as únicas possíveis, que esvazia a escolha democrática e vulnera a real alternância de poder.  Essa tendência é ainda mais efetiva e perigosa, quando ela se dá no contexto atual da criminalização da política, entendida como atividade corrupta e ineficiente.

Estamos vendo esse processo agora mesmo, na transição governamental. 

Nossas classes dominantes, ou partes delas, admitiram a derrota de Bolsonaro, até mesmo porque ele, com seu tosco primitivismo, vinha afetando o “ambiente de negócios”, especialmente nas relações econômicas internacionais. 

Contudo, elas, ou partes delas, não querem admitir que o novo governo Lula pratique políticas econômicas divergentes das admitidas pelo “mercado”. A pressão por um ministro da Fazenda do “mercado” e as críticas infundadas e precipitadas a Haddad e Mercadante são significativas, nesse sentido. 

O ideal, para o projeto neoliberal, é que não apenas o presidente do Banco Central, mas também todos os outros “gestores” das diversas políticas econômicas, como o ministro da Fazenda, o ministro da Indústria e Comércio, os presidentes e diretores dos poucos bancos públicos e das estatais ainda restantes etc., fossem “independentes”, isto é, diretamente dependentes dos interesses do mercado e infensos à alternância de poder.

Em muitos países, esse processo de insulamento jurídico-político das políticas neoliberais vem ocorrendo há algumas décadas, em maior ou menor grau, o que, muitas vezes, impede mudanças significativas num quadro socioeconômico crescentemente negativo e incerto, especialmente em épocas de crise, como a que estamos vivendo.

É justamente essa “mesmice neoliberal” que fragiliza os sistemas de representação política, ao substituir a representação da cidadania pela “gestão técnica” dos interesses de um mercado “financeirizado” e globalizado.  Como nada muda de verdade, independentemente dos governos de plantão, a política tradicional passa a ser vista como algo inútil, que não beneficia ninguém, além dos históricos donos do poder. 

Abrem-se, assim, as portas para o crescimento da extrema-direita, que, embora não coloque em questão, de fato, as políticas neoliberais, nutre-se do ressentimento social por elas provocado e canaliza-o para a “antipolítica”, com frequência tentando isolar a centro-esquerda e a esquerda, que ficam, algumas vezes, sozinhas na defesa da real institucionalidade democrática. Foi o que aconteceu na história recente do Brasil. 

Bolsonaro, o neofascista, foi, em grande parte, a consequência lógica de Temer, o criador do teto de gastos e da “Ponte para o Futuro”, mais conhecida como “Pinguela para o Passado”.

Entretanto, a derrota do bolsonarismo e a frente democrática que se criou em torno de Lula criam oportunidade histórica para um novo ciclo político que fortaleça e aprofunde a experiência democrática brasileira. 

Mas, para que isso ocorra, será necessário que o projeto de reconstrução e transformação do Brasil, eleito agora junto com Lula, possa ultrapassar as estreitas barreiras lógicas, simbólicas, políticas e jurídicas impostas pelo já anacrônico neoliberalismo, a começar pelo fracassado teto de gastos. 

Não se trata, é claro, de se romper com toda e qualquer regra fiscal e de se apostar num suicida e voluntarista solipsismo econômico, mas de instituir novos regras viáveis, flexíveis e de longo prazo que permitam que o país volte a crescer, distribuindo renda, gerando empregos e assegurando direitos.

O governo Lula precisa apresentar resultados, num cenário interno conturbado e num cenário externo restritivo. Sem isso, a democracia não se consolidará, e corre-se o sério risco da volta, desta vez avassaladora, do neofascismo bolsonarista.  

Não basta, portanto, derrotar o bolsonarismo. É necessário também derrotar política, ideológica e juridicamente o neoliberalismo, que já fracassou economicamente, para que a democracia se “salve”. 

Não será tarefa fácil, mas é missão democrática necessária. 

Como diria Celso Furtado, é necessário “ampliar o horizonte do campo do possível.”  

E isso só é possível em democracia de verdade. 

 

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