É isto um homem?
A matança indiscriminada de animais, a poluição das nascentes e o desrespeito pelo próximo alcançaram níveis insuportáveis
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Escrever um texto com este título exige, antes de tudo, um pedido de licença a Primo Levi (1919-1987), que assim intitulou a obra na qual faz um relato da sua experiência em campos de concentração. Irretocável, a pergunta que nos faz Levi continua servindo como forma de questionamento acerca dos nossos limites e do mal que o ser humano insiste em abrigar, alimentar e espalhar. Que homem é este que destrói sua própria casa, queimando florestas, derretendo geleiras, envenenando a comida, poluindo rios e mares, e que consegue sorrir enquanto milhares morrem vítimas da sua estupidez?
Parece-nos que chegamos ao limite da nossa irresponsabilidade, enquanto seres humanos. Infelizmente, chegamos também ao ponto de não retorno. A matança indiscriminada de animais, a poluição das nascentes e o desrespeito pelo próximo alcançaram níveis insuportáveis. O planeta está esgotado e não há mais tempo para reverter o processo de caos. Em meio a tudo isso, o ser humano baba e esperneia, tentando se afogar no vômito da sua própria insanidade, dedicando os últimos zeptosegundos que lhe restam ao exercício da mediocridade e da insensatez.
E de repente, nos pegamos pensando em como a barbárie ainda se mantém em tempos ditos modernos, pós-modernos e líquidos. Uma resposta para tal reflexão seria a compreensão e, consequente aceitação, de que a barbárie não é algo exterior ao homem, mas algo que vive em seu íntimo, pronta a despertar não se sabe bem como ou quando. Os romanos consideravam “bárbaros” todos aqueles que ultrapassavam os limites políticos, jurídicos e morais. É claro que esses limites eram determinados pela política expansionista da própria Roma. Em tempos mais recentes, no entanto, considera-se como “bárbaro” o ser humano que age contrariamente aos princípios racionais, que existem para manter os povos em harmonia.
Sobre esta questão, me vem à mente o livro A barbárie interior – ensaios sobre o i-mundo moderno (2001), de Jean-François Mattéi. Lá, o autor observa que o conceito de bárbaro se fez presente nos principais momentos da história da humanidade. Se hoje a barbárie não é tão referenciada, não quer dizer que tenha sumido, ao contrário. Hoje, a barbárie se manifesta desde a decadência da educação, ao despertar de alguns regimes totalitários. No mundo contemporâneo, afirma Mattéi, a grande barbárie é a infidelidade do homem à sua própria humanidade.
Falando nisso, lembro que gosto muito da expressão “à espera dos bárbaros”, que nomeia um romance do escritor sul-africano J.M Coetzee e também um poema de Constantino Cavafis (1863-1933). Rica em significação, a referida expressão nos leva a inferir, que não estamos realmente à espera dos bárbaros, pois, na verdade, eles nunca saíram de nós. Talvez tenham até se “reinventado”, se “modernizado”, tornado-se “homens”, mas sempre estiveram ali, à espreita. Se assim não fosse, como denominaríamos aquele que se regozija por estuprar uma mulher, uma mulher bêbada e inconsciente? É isto um homem ou é isto um bárbaro? E como deve ser chamado aquele que defende torturadores carniceiros, como se fossem homens de honra? Bárbaro, certamente. Há ainda os negacionistas, os espancadores e abusadores de crianças e mulheres, corruptos, assassinos de índios, negros, pobres, minorias. Homens ou bárbaros?
Voltando a Mattéi, o filósofo afirma que o bárbaro não é mais estranho ao humano que a barbárie é estranha à civilização, ou a morte à vida: cada um dos elementos do par, sem ser semelhante ao outro, é inseparável dele, o que significa dizer que a barbárie é constitutiva da humanidade ou, em outros termos, que é interior a ela. Platão, por sua vez, no VII livro de A República (IV a.C), afirma que a barbárie reside bem no fundo da nossa alma; um fundo tão opaco quanto um lamaçal, impróprio para se abrir à luz.
Não é, no entanto, pela condição simbionte que ata o homem ao bárbaro e o bárbaro ao homem, que devemos nos entregar a um estado de dormência e laissez-faire. Ao contrário, toda e qualquer tentativa de se normalizar atos cometidos por bárbaros devem ser fortemente repudiada por aqueles que não perderam a ternura nem se deixaram embrutecer, uma vez que a civilização não pode comungar com os bárbaros que estupram, opõem-se às campanhas de vacinação, destilam ódio, defendem torturadores e comemoram a morte. Para tanto, observemos Edgar Morin (2009), quando diz: “Nada é irreversível, e as condições democráticas humanistas devem regenerar-se em permanência, caso contrário elas se degeneram. A democracia precisa recriar-se em permanência. Pensar a barbárie é contribuir para a regeneração do humanismo. É, portanto, a ela resistir”. Infelizmente, caro leitor, o pior ainda está por vir. Resistamos à barbárie!
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