Durante a guerra civil, depois do golpe

O Festival É Tudo Verdade começa hoje e exibe no sábado um filme urgente sobre o pós-golpe em Mianmar e um registro clássico da guerra civil na Rússia

(Foto: Divulgação)


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O Festival Internacional de Documentário É Tudo Verdade começa hoje em versão híbrida, presencial (em SP e no Rio) e online para todo o Brasil. Além das tradicionais mostras competitivas e paralelas (O Estado das Coisas, Foco Latino-americano), a programação – toda gratuita – inclui uma retrospectiva do paulistano Ugo Giorgetti, uma homenagem a Ana Carolina e diversas conferências e debates sobre documentário. 

Confiram o site do festival e a cobertura diária do meu blog com resenhas de muitos filmes. Comento abaixo dois filmes que passam online neste sábado.

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A saga dos "vermelhos"

Assistir a essa raridade hoje, enquanto a Rússia tenta dominar militarmente a Ucrânia, é uma experiência pouco comum. Em 1921, Dziga Vertov reuniu fragmentos filmados por sua equipe durante os três anos anteriores, quando o Exército Vermelho combateu os "brancos" (a oposição interna) para consolidar o legado da revolução de 1917. O filme silencioso teria sido exibido apenas uma vez, em 1921, e retirado de circulação. Era dado como perdido até que o historiador de cinema Nikolai Izvolov conseguiu reunir o material e reconstruir a obra segundo documentos históricos. No ano passado, um século exato depois de concluído, A História da Guerra Civil (Istoriya grazhdanskoy voyny) voltou às telas no Festival de Documentários de Amsterdã.

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filme
Divulgação(Photo: Divulgação)Divulgação

Lá estão a Crimeia, Kiev e a região do Donbass em cenas curtas captadas por Vertov, em meio a diversas outras localidades da imensa União Soviética, além da Tchecoslováquia. Por toda essa área aconteceram combates, sabotagens e destruição durante a guerra civil. A coletânea de imagens se inicia com fábricas e instalações destruídas pelos contrarrevolucionários a fim de danificar o poderio bolchevique. Segue-se, então, este intertítulo: Responderemos ao terror branco com o terror vermelho da Revolução!".

A partir daí assistimos à mobilização das tropas soviéticas contra "anarquistas", cossacos contrarrevolucionários e insurretos em várias partes do país. Os intertítulos anunciam tomadas de cidades e de prisioneiros, libertação de presos bolcheviques, funerais de combatentes, tribunais militares e algumas cenas de batalha filmadas à distância. Ao caos que vivia a recém-nascida URSS o filme responde com uma certa noção de ordem e controle da situação. Há destaque para veículos e equipamentos bélicos, bem como para os líderes dos dois lados, filmados em poses para a câmera. Leon Trotsky, comandante supremo do Exército Vermelho, aparece discursando para uma unidade (foto acima), enquanto o único trecho que mostrava Stalin desapareceu (estranhamente?) dos arquivos pesquisados por Izvolov.

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Os primeiros tanques de guerra, de fabricação britânica, faziam sua estreia na Rússia, apelidados de "monstros". O abismo tecnológico e estratégico entre 1921 e 2022 fica evidente a todo momento, assim como os outros abismos criados pelo curso da história. 

A vitória final dos "vermelhos" recebe um comentário épico voltado não exatamente para a glória bélica, mas para a reconstrução da indústria e da agricultura devastadas nos anos de guerra.    

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Esse filme de compilação não tem a criatividade de linguagem dos cinejornais Kino Pravda, muito menos do hiperclássico vertoviano O Homem com a Câmera, de 1929. Embora filme a bordo de trem e barco, e use um mapa animado em dado momento, Vertov usava basicamente panorâmicas descritivas e, ao que tudo indica, montagem meramente sucessiva. Mas sua visão cinematográfica já transparece, por exemplo, numa sequência perto do fim, que mostra detalhes de destruição com movimentos de câmera reveladores.

A trilha musical feita especialmente para essa reaparição do filme, de autoria do duo estadunidense The Anvil Orchestra (Terry Donahue e Roger Clark Miller) impõe uma sonoridade marcial que talvez não largue o ouvido do espectador depois da palavra Fim.   

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Exibições:

02/04 – 11h: É Tudo Verdade Play - Limite de 1500 Visionamentos

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03/04 – 14h: Instituto Moreira Salles (RJ)

03/04 – 15h30: Instituto Moreira Salles (SP)

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06/04/2022 - 15h às 16h – Debate A guerra civil por Vertov

Durante a entrevista, Nikolai Izvolov fala a Luis Felipe Labaki sobre a reconstituição do filme de Dziga Vertov. 

No Itaú Cultural Play e no É Tudo Verdade Play.

A vida depois do golpe

A primeira cena de Diários de Mianmar já correu o mundo antes do filme. No dia 1º de fevereiro de 2021, uma mulher fazia dança aeróbica inocentemente num palquinho de rua enquanto atrás dela uma caravana de SUVs se aproximava do Parlamento em Naipidau, a capital de Mianmar. Era o início do golpe de estado que mergulharia a antiga Birmânia em mais uma onda de terror militarizado. A história recente do país é uma sucessão de interrupções da democracia para longos anos de regime militar.

No ano passado, além de prender o presidente e as principais autoridades do governo eleito dois meses antes, os golpistas impuseram a lei marcial, bloquearam redes sociais e, diante dos primeiros protestos, mataram mais de 1500 pessoas e detiveram mais de 9.000. Um pequeno grupo de ativistas e cineastas registraram, como podiam, a vida depois do golpe. Diários de Mianmar (Myanmar Diaries) reúne uma variedade desses registros e os combina com vinhetas de ficção.

As imagens documentais são brutais, sobretudo pela tensão embutida nas filmagens de celulares através de janelas entreabertas. Espancamentos de rua, panelaços e protestos chegam crus à tela. Uma mulher admoesta, maternal mas desafiadoramente, os soldados enfileirados em caminhões da repressão. Filhos imploram que os militares não arranquem seus pais de casa para levá-los sabe-se lá para onde. 

As separações de entes queridos são o eixo central do filme. Aí se inserem os trechos de ficção. Num deles, um rapaz deixa o emprego para aderir ao Movimento de Desobediência Civil. Em outro, uma moça viaja para Bangkok como se saísse do inferno. Uma mulher é morta nas manifestações e reaparece como uma sombra ao companheiro, que se despede de uma peça de roupa íntima dela antes de cometer suicídio. Há, ainda, mais uma indicação de suicídio pela perda da pessoa amada e o caso de uma moça que fica grávida e hesita em contar ao namorado, que está de partida em fuga para a selva – lá onde um grupo de pessoas é treinada para a guerrilha, em flagrante inferioridade às forças militares. 

Filmado, editado e distribuído clandestinamente, Diários de Mianmar não tem créditos pessoais. É assinado pelo Myanmar Film Collective. Os personagens ficcionais não são identificados visualmente. Disso resulta um certo caráter impressionista, realçado por uma série de situações apenas insinuadas, sem contornos bem definidos. Sua importância vem principalmente do fato de ter sido feito em condições de risco absoluto. Portar um celular numa daquelas manifestações podia equivaler a uma sentença de morte. 

O filme ganhou os prêmios de melhor documentário na mostra Panorama e da Anistia Internacional no Festival de Berlim deste ano. Uma curiosidade: o sinal de protesto com três dedos erguidos foi inspirado pela franquia hollywoodiana Jogos Vorazes. De onde menos se espera...

Exibição:

02/04 – 13h – online: É Tudo Verdade Play - Limite de 1500 Visionamentos

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