Dona Maria: retrato de um Brasil fraco. Por fome!
"A cena não costuma aparecer nos telejornais nem nas páginas de jornais. Mas repete-se diariamente em muitas cidades. O brasileiro está fraco, sem força. Por fome. Como dona Maria, que no sábado, dia 12, não conseguia levar a comida da quentinha à boce. Foi preciso ser alimentada pelo frei Diego Melo, que há quatro meses deixou São Paulo, sai residência oficial, para impulsionar no Rio o Serviço Franciscano de Solidariedade", relata o jornalista Marcelo Auler
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Por Marcelo Auler, em seu Blog - Dona Maria esperava na fila por uma quentinha, no sábado, 12 de setembro, mas não resistiu. Desmaiou pouco antes de a comida começar a ser distribuída. Reanimada por algumas pessoas, a sexagenária alagoana tornou-se o retrato da fragilidade de uma grande parte da população brasileira: não tinha forças para, com seu próprio braço, levar a comida à boca. Foi preciso a ajuda do frei franciscano Diego Melo para ela se alimentar e recuperar parte dos próprios sentidos.
Dona Maria é o retrato dos brasileiros invisíveis, esquecidos pelo governo e por parte da sociedade. Retrato de um Brasil fraco, por conta da fome, consequência direta da omissão governamental. Ela pertence àquele grupo da população que pouco aparece no dia a dia para o resto da sociedade de um país desgovernado e desordenado em meio à pandemia da Covid-19.
Situações como a dela, atesta Frei Diego, se repetem. “Há várias outras situações como a de dona Maria. Tantas, tantas outras”, diz esse catarinense de Lages (SC), formado em psicologia, oficialmente sediado na Congregação Franciscana de São Paulo. Aos 37 anos, nove dos quais ordenado religioso, nos últimos quatro meses ele dedicou seu dia-a-dia à “população em situação de rua” no Rio de Janeiro, através da Tenda Franciscana. Enquanto arruma as malas para novos desafios, ele dá seu testemunho, que retiramos de sua página no Facebook:
“Vestindo uma camiseta do Brasil, com o braço quebrado por um espancamento sofrido na rua, rosto marcado pelo sol e pelo sofrimento imposto pela miséria, fiquei pensando que esse, infelizmente, é o retrato de um país que não queremos ver“.
Organizada pelo Serviço Franciscano de Solidariedade – SEFRAS, cuja base no Rio é o tradicional Convento de Santo Antônio, no Largo da Carioca, a Tenda Franciscana, com Diego e seu irmão de congregação Frei Marx Rodrigues dos Reis, busca superar a omissão dos governos, seja municipal, estadual ou federal.
Cuida de uma população, cada dia maior, que sem abrigo, sem emprego, sem qualquer apoio oficial e, portanto, sem perspectivas e esperanças, sobrevive pelas calçadas da cidade. Abandonada. Com fome. Fraca e sem forças, como dona Maria.
Com a ajuda de cerca de 150 leigas e leigos que se revezam – “precisamos de mais voluntários”, alerta Frei Diego – a Tenda Franciscana distribui, diariamente, 600 marmitas com refeições preparadas no Convento do Largo da Carioca. São 400 doadas pelas ruas do centro do Rio de Janeiro na hora do almoço e outras 200 no final do dia.
A base do atendimento é o Largo da Carioca, onde dona Maria chegou sofrendo, fraca, com fome, necessitando, naquele sábado, não apenas de uma refeição, mas também de uma mão solidária que levasse a comida da quentinha à sua boca. Ajuda que lhe fez recobrar as forças e afastar o medo que tinha, naquele momento, de estar próxima da morte.
“Enquanto a alimentava vagarosamente, ouvia o seu choro e suas despedidas, pois seu mal-estar era tamanho que ela achava que estava morrendo“, relatou Frei Diego na rede social.
Pouco se sabe de dona Maria. Frei Diego calcula que ela tenha em torno de 60 anos. Declarou-se nordestina, de Alagoas. Mãe de filhos com os quais não mantém nenhum contato. Demonstrou, por sua fala e por seu temperamento, algum tipo, ainda que leve, de insanidade mental. Não revelou os motivos que a levaram à rua, nem qualquer detalhe de sua história pessoal. Mas já há algum tempo perambula pelo centro do Rio, como atestam outros atendidos pela Tenda Franciscana. Ela mesma retornou à distribuição de comida dias depois.
“Dona Maria é o retrato de uma sociedade desigual, que explora até a morte os seus pobres para garantir os privilégios dos poderosos“, diagnosticou Frei Diego na sua postagem, cuja íntegra reproduzimos abaixo.
Uma desigualdade que aumentou com a pandemia, pela omissão dos governos e descaso de parte da sociedade preocupada em retomar a vida nos bares, nas praias, nas festas, independentemente do descontrole da doença, de suas vítimas e dos chamados “invisíveis”. Aqueles que são totalmente desconhecidos pelos governantes, vivem desapercebidos por grande parte da sociedade e sobrevivem graças à solidariedade de alguns movimentos sociais e a pessoas abnegadas. Tal como relatamos aqui, em abril – Não basta bater panela! É preciso enche-la!. Movimentos que ainda precisam de apoio. De ajuda. De verbas.
Fome de atenção, carinho e empatia
Movimentos como a Tenda Franciscana que Frei Diego, depois da experiência acumulada em São Paulo, há quatro meses veio ajudar a impulsionar no Rio de Janeiro. Cumprida a missão, já está de malas prontas para Guaratinguetá (SP), onde aplicará a experiência acumulada. Levará a experiência da importância que pequenos gestos provocam, como o por ele vivenciado aqui, a partir de um atendimento em São Paulo.
Foi no início de junho, no meio do atendimento diário, quando ouviu lhe chamarem. Reconheceu o homem que gritou por seu nome, mas não lembrava o nome do interlocutor. Ao questioná-lo, ouviu inusitada resposta:
“Frei Diego, para a sociedade o meu nome é lixo, mas para você, o meu nome é Marcos da Silva.”
Conhecera-o em São Paulo, na Tenda Franciscana, como mais um atendido pelo trabalho da SEFRAS. Mais surpreso ficou ao descobrir o que provocara a dispensar atenção àquele homem:
“Frei, lembra das vezes que nós conversamos lá em SP? Das vezes que você disse que gostava de fazer caminhada, assim como eu, e que até combinamos de um dia caminhar juntos até Aparecida? Pois é, quando eu soube que você tinha vindo para o Rio, eu decidi vir te agradecer por tudo o que você fez por mim, pelas conversas e pelas vezes que você parava para conversar comigo na fila do almoço. Gastei 8 dias de viagem, entre muita caminhada e algumas poucas caronas. Mas hoje tô realizado porque eu te reencontrei.”
Frei Diego relata e confessa: “ele começa a chorar e me dá um abraço apertado. Meio sem saber o que pensar ou dizer, sinto um nó na garganta e uma vontade imensa de chorar”
Da mochila surrada, retirou uma imagem de Nossa Senhora para presentear o “amigo”. Em seguida, com R$ 10,00 conseguidos ali, retorna à estrada na volta para a São Paulo. Seu gesto provoca no religioso a certeza de que “um pouco de atenção pode tocar profundamente a vida das pessoas. Dei-me conta, mais do que nunca, de que a Tenda Franciscana não distribui apenas quentinhas. Entendi que a fome de atenção, carinho e empatia talvez incomode mais do que a falta de comida”.
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