Do neoliberalismo “keynesiano”

O professor do Departamento de Economia da USP Eleutério Prado analisa os movimentos atuais para "reestruturar a relação entre mercado e Estado"

(Foto: REUTERS/Nacho Doce)


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Por Eleutério Prado 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Trata-se de um oxímoro? Bem, sugere-se aqui que esse termo formado de opostos, ainda que inédito, caracteriza melhor a fase do capitalismo após a crise de 2007-08.[i] Mas essa combinação díspar, uma integração inesperada, não se segue tranquilamente. Talvez se devesse caracterizar esse novo momento do neoliberalismo, como ficará claro mais à frente, como “pseudo-keynesiano” – e não simplesmente como keynesiano, mesmo entre aspas. Para começar a esclarecer essa questão aqui posta, é preciso começar apresentando um rápido registro histórico.

Como se sabe, o próprio capitalismo no pós-Segunda Guerra Mundial passou por duas fases bem conhecidas: a primeira, que durou de 1945 até o fim da década dos anos 1970 ou pouco depois, pode ser chamada propriamente de keynesiana; a segunda, que se iniciou claramente a partir de 1982 e prosperou até a grande crise do começo do século XXI, é normalmente chamada de neoliberal. Ambas, cada uma em seu próprio momento histórico, visaram garantir a sobrevivência e mesmo a maior prosperidade possível do capitalismo. Como essa duas formas sucessivas de governança acabaram se esgotando, uma outra, não inteiramente nova, teve de surgir. Para mostrar como essas duas formas estão agora se combinando, é preciso apresentar uma sequência de distinções.

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De acordo com a formulação precisa de Dardot e Laval,[ii] o neoliberalismo consiste em uma racionalidade baseada nas próprias normas que regem a concorrência dos capitais. Essa razão normativa afirma que a ação humana deve ser conduzida pela maximização de resultados em todas as esferas da vida; para tanto, os seres humanos devem se comportar como as empresas mercantis, devem se encarar como capitais humanos. Eis que visa conformar de modo amplo – senão total – os comportamentos dos atores sociais em geral, governantes e governados, capitalistas e trabalhadores, sejam estes últimos assalariados ou por conta própria.

A sua introdução se deveu à necessidade premente do capitalismo ao final da década nos anos 1970 de criar condições para um aumento da taxa de lucro. Posta por via política, institucionalizada por meios administrativos, ela acabou se impondo por si mesma por meio da difusão na vida social em geral. Ainda que apareça como um ganho de liberdade e autodeterminação, trata-se ao fim e ao cabo de um modo de subsunção não apenas do trabalho, mas dos próprios trabalhadores enquanto seres vivos inteligentes, ao capital. Entretanto, ao invés de ter sido posta por meio de uma dominação explícita, impôs-se porque foi capaz de dar destino às pulsões desejantes, conformando, assim, o modo de ser dos sujeitos sociais.

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Nesse sentido genérico, essa forma política intrusiva não foi ainda superada. De acordo com os dois autores citados, “o neoliberalismo é a razão própria do capitalismo contemporâneo”. No entanto, a sobrevivência do capitalismo não pode se basear apenas na propagação de uma racionalidade, de um novo espírito do mundo. Esta requer também uma ideologia que fomenta certas práticas e uma política social e econômica que obedece às orientações dessa ideologia.

Foi assim que ocorreu, na primeira fase do neoliberalismo, uma reabilitação da crença na eficiência e na eficácia dos mercados – não mais, porém, como atributos de uma ordem natural, mas como predicados de uma ordem moral. Eis que desse modo ficou justificado tomar essa normatividade como aquela que deveria caracterizar o humano na luta individual pela sobrevivência. Para que se tornasse efetiva era preciso reformar as instituições privadas e estatais segundo os modelos dos mercados. Era preciso desregular as atividades econômicas; era necessário baratear a força de trabalho, era preciso privatizar as empresas do Estado.

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O neoliberalismo, como se sabe, veio substituir o keynesianismo enquanto normatividade configuradora da sociedade. Este último orientou por mais de trinta anos, quase sem contestação, a política social e econômica no centro do capitalismo, com impactos importantes na periferia. Reinou desde o fim da II Guerra Mundial até o momento em que uma queda pronunciada da taxa de lucro nos anos 1970 veio destroná-lo.

O keynesianismo, ao contrário da longa tradição que substituiu, nunca confiou na autoregulação dos mercados; se deixados a si mesmos, eles operam – dizem – quase sempre aquém da propalada eficiência e eficácia máxima possível. Comtempla, por isso, uma certa atuação do Estado para dar suporte à atividade econômica. Essa intervenção reguladora, entretanto, não visa substituir, mas repor o liberalismo e, assim, melhor conservar o capitalismo. De modo geral, essa corrente defendia a necessidade de que o sistema fosse constantemente regulado por meio da política econômica com o objetivo principal de garantir o pleno emprego e manter o controle da inflação. Mas acolhia, também, um planejamento indicativo e, assim, as políticas industriais. As empresas estatais eram aceitas e até recomendadas quando vinham preencher “vazios” na malha das relações intersetoriais.

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Keynes, como se sabe, diante das turbulências observadas no passado, assumiu teoricamente que o sistema econômico era inerentemente instável, que gera incerteza de modo constante, que flutua periodicamente porque o investimento se retrai, fazendo, em consequência, com que as crises se sucedam. Precavia-se, ademais, com a possibilidade de que ele pudesse perder legitimidade em tais momentos, podendo então ser abalado por ondas de insatisfação, revoltas e até mesmo revoluções. A sua teoria não se preocupava apenas com o funcionamento deficiente do sistema econômico, mas também com a falta de consenso e mesmo com os esgarçamentos e as rupturas no tecido social. Predicava, portanto, que ao Estado cabia cuidar não só do nível da demanda efetiva, mas também se esforçar para melhorar a repartição da renda, buscando até certo ponto a “justiça social”.[iii]

Ora, era justamente esse último caráter da política econômica keynesiana que mais contrariava os liberais de direita que se reuniam desde 1947 na Sociedade Mont Pelerin. O keynesianismo junto com a socialdemocracia cooptava os trabalhadores, em especial, os sindicalizados, por meio do estado de bem-estar social, porém, segundo esses crentes na “ordem espontânea” dos mercados, isso abalava os fundamentos da liberdade mercantil e, assim, abria o caminho para o socialismo. Este era definido de modo muito amplo por Hayek, prócer dos intelectuais neoliberais, como a pretensão de realizar a justiça social por meio do Estado.

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Enquanto Keynes aceitava sacrificar em parte o “livre mercado” para que se pudesse obter uma relativa paz social, os partidários do primeiro economista não aceitavam qualquer restrição aos privilégios dos capitalistas. Enquanto estes empunham a bandeira da liberdade negativa, os keynesianos erguem a bandeira da prosperidade para todos – ainda que não uma plena igualdade. Eis que esta última seria incompatível com a “economia monetária de produção”.

O neoliberalismo não é liberal no sentido político da palavra, mas, ao contrário, é iliberal. Ele não apenas despreza o igualitarismo, a solidariedade para além da família, assim como um sistema de proteção social que abranja os trabalhadores em geral, mas também desconfia do voto popular. O grande problema da sociedade contemporânea para eles vem a ser limitar a democracia para que ela não possa abalar os fundamentos sistêmicos e individualistas da “economia de mercado”. [iv] Eles suspeitam que as massas populares possam, com os seus votos, barganhar direitos e benefícios com os agentes e partidos políticos em detrimento tanto do orçamento público quanto da ordem moral que sustenta o capitalismo.

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A crise financeira de 2007-08 primeiro e depois a crise de 2020-21, produzida pela nova pandemia do coronavírus, vieram mostrar que as políticas neoliberais eram insuficientes, ou mesmo inadequadas, para dar suporte ao capitalismo. A austeridade, por exemplo, não poderia ser mantida quando o PIB pode despencar mais 10 por cento num ano. Por isso, passou-se a aceitar as políticas tipicamente keynesianas como forma de garantir o nível da atividade econômica, a saber, expansão fiscal para criar demanda efetiva e políticas monetárias acomodatícias. Ora, isso parece implicar que está em curso uma transformação na relação entre mercado e Estado nos países centrais do ocidente capitalista.

Os governos na Europa e nos Estados Unidos passaram mesmo a desafiar a lógica do “livre-mercado”, pondo em prática políticas industriais direcionadas para determinados objetivos. Assim como o keynesianismo autêntico falhara na década dos anos 1970 na dinamização do sistema econômico, o seu sucessor histórico se mostrou incapaz de evitar os colapsos sobrevenientes tanto na produção industrial em sentido amplo quanto das pirâmides financeiras que não pararam de crescer desde os anos 1980. Ademais, com o estancamento da globalização e a explicitação das rivalidades imperialistas, advieram certos imperativos da competição em escala internacional, assim como demanda por energia limpa, tecnologias digitais etc., os quais passaram a exigir a intervenção do Estado.

Tais políticas keynesianas foram retomadas, mas sem qualquer preocupação com a justiça social e com a proteção pública aos trabalhadores. Eis que a política de conciliação de classes não é mais possível agora tal como o fora no pós-II Guerra Mundial. Se naquele período histórico a taxa de lucro média nos setores geradores de valor se encontrava em nível bem alto, agora ela se encontra rebaixada num mínimo incapaz de estimular robustamente o investimento. Se então existia um amplo horizonte de oportunidades para manter a acumulação em níveis elevados, a situação agora é de superacumulação de capital industrial e financeiro.

A política econômica do neoliberalismo original, portanto, passou a ser contrariada, mas apenas com o intuito de usar o poder do Estado na recuperação eventual da lucratividade do capital. Trata-se, portanto, da adoção de certas políticas econômicas recomendadas pela tradição criada por John M. Keynes, mas sob a égide da normatividade neoliberal. Esta esteve presente nas últimas quatro décadas e continuará a estar no futuro previsível. É por isso que esse “novo” keynesianismo se explicita melhor como um pseudo-keynesianismo.

Diante da ameaça climática, diante da competição tecnológica entre Estados Unidos, China e Europa, dada a acumulação excessiva de capital financeiro (eis que o total de ativos soma agora cinco vezes o PIB mundial), frente à relativa de-globalização, os Estados nacional do centro do sistema estão criando planos de desenvolvimento econômico, os quais se arriscam a ser meras miragens no futuro não muito distante. Dentre eles, fala-se, por exemplo, no Green New Deal, uma estratégia para combater o aquecimento global que cria ao mesmo tempo, supostamente, bons empregos para uma parte significativa das populações desses países.

Segundo Mavroudeas,[v] não se pode acreditar na propaganda e no marketing dos governantes atuais do capitalismo, os quais se encontram atribulados com dificuldades difíceis de enfrentar. Eis que o capitalismo parece ter criado barreiras ao seu próprio desenvolvimento que não parece ser capaz de superar, tais como a “ruptura metabólica” e a financeirização. Segundo ele, “o Green New Deal é parte e embrulho da restruturação capitalista que está sendo levada a efeito por forças neoconservadoras, sociais-liberais. (…) O Green New Deal consiste numa estratégia cripto-protecionista voltada para a indústria de ponta que visa dar suporte aos capitais ocidentais frente ao desafio da China e dos mercados emergentes”. Os planos, em face da situação presente do capitalismo, não preveem a retomada do estado de bem-estar social ou mesmo uma onda de aumentos dos salários reais, mesmo se parte da esquerda sonhe com isso.

Em consequência, para terminar, é interessante registrar aqui uma pertinente pergunta de Hugo Fanton, professor da USP, e a resposta que lhe foi dada por Wolfgang Streek numa entrevista recente.[vi] Aponta-se, questiona o primeiro, “para a possibilidade de mudança na orientação da política macroeconômica, uma nova lógica a reger o centro do capitalismo, anunciando o fim do neoliberalismo em uma perspectiva progressista. Qual seria a sua avaliação das medidas de estímulo à retomada econômica, sejam elas nos EUA ou na União Europeia? Podemos entrar em uma nova fase que dê sobrevida ao ‘capitalismo democrático’?”.

A resposta dada por Streeck a esse questionamento se contrapõe claramente ao otimismo de parte da esquerda no Brasil e no mundo ocidental. Eis o que disse: “(…) depende do que você quer dizer com ‘uma nova lógica do capitalismo’ e do que chama de ‘sobrevivência do capitalismo democrático’. O capitalismo tem evoluído permanentemente (…). O que não mudou foi sua natureza fundamental: uma economia política guiada por uma compulsão intrínseca pela acumulação sem fim de capital privado capaz de gerar mais capital privado. Não há razão para acreditar que o estímulo econômico fiscal, independentemente de seu tamanho, representaria uma ruptura com essa lógica”.

Bem, sendo assim, ainda seria preciso estudar melhor como essa compulsão está se configurando agora, seja por meio de um redirecionamento do processo de acumulação seja no plano das instituições e das formas de governança, nesse novo período do ocaso do capitalismo. Como se mencionou, em particular, uma reestruturação na relação entre mercado e Estado parece estar em processo de constituição.

Notas

[i] O artigo de Cédric Durand, “Economia de Joe Biden – reversão em relação à 1979”, publicado no site A Terra é Redonda, apresenta uma visão alternativa do que vem ocorrendo no capitalismo após a crise de 2008 e, principalmente, após os efeitos da pandemia do coronavírus, iniciada em 2020.

[ii] Ver Dardot, Pierre e Laval, Christian – A nova razão do mundo – Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

[iii] Ver sobre isso Prado, Eleutério F. S. – O que é keynesianismo? In: A terra é redonda, 11/07/2021. https://aterraeredonda.com.br/o-que-e-keynesianismo/

[iv] Ver Slobodian, Quinn – A nova direita (neoliberais e ultradireita: o tronco único) https://aterraeredonda.com.br/a-nova-direita/

[v] Ver Mavroudeas, Stavros – On the pandemic and it is consequences on the economy and work. In: Stavros Mavroudeas blog. Original em italiano: Bolletino Culturale, 24 julho d 2021.

[vi] Fanton, Hugo. Velho capitalismo, novas crises. Folha de S. Paulo, 25 de julho de 2021.

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