Do fundo ao fosso
"Na educação do modelo do NEM, saímos do fundo bolsonarista para o fosso neoliberal", aponta
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A Educação (com E maiúsculo) é uma área muito complexa. Ela é todos os micro processos realizados por cada educador e cada educando, mas também é (no sentido ontológico) os grandes planos e ações políticas objetivas. Daí, muitas vezes, acabamos por usar o termo como forma coletiva de falar de tudo na Educação. Isso, obviamente, é um erro. Apesar do caráter pedagógico do termo “Educação”, na medida que se usa para determinar um conjunto de práticas e valores afeitos ao ato de educar e ensinar, ao não discriminar todos os processos aí envolvidos fazemos uma generalização que prejudica o entendimento.
Digo isso porque ao se dizer que o “Novo Ensino Médio” – como política de educação – é errado e precisa ser revogado, imediatamente surgem posições em contrário que dividem o termo “Educação” e passam a individualizar os motivos para que não seja revogado. Normalmente a posição se dá em cima dos micro processos. Se você aponta que o modelo carece de base estrutural para poder funcionar (não há investimento, não há salas, não há professores, não há equipe de apoio, não há condição social e etc.), imediatamente os defensores do NEM (Novo Ensino Médio) passam a dizer que “é só investir” e, logo, o modelo não é “fundamentalmente errado”. Vou descartar aqui o fato de que NUNCA atingimos o nível de investimento apontado como necessário para a educação brasileira (algo como o dobro do que se investe hoje em termos de percentual do PIB). Pretendo mostrar aqui porque digo que o modelo é FUNDAMENTALMANTE errado e NÃO PODE SER REMENDADO, aperfeiçoado ou corrigido por mudanças ad hoc.
Ao contrário do que o senso comum acredita, a Educação sempre foi, historicamente, uma ferramenta de DIFERENCIAÇÃO SOCIAL. A Educação sempre foi utilizada para dar condições intelectuais dos grupos sociais seguirem reproduzindo os seus espaços de vida e, ao menos até o século XX, nunca mudar de condição social. Desde as antigas sociedades da Mesopotâmia, passando pelas sociedades pré-colombianas na América, a Educação sempre foi delimitada pelos estamentos sociais: as elites tinham educação própria, para reproduzirem-se, os grupos religiosos faziam o mesmo e não era necessário ao povo mais do que lições militares. Escolas diferentes para diferentes estratos sociais na manutenção férrea das formas da sociedade.
O primeiro governante a buscar uma transformação desta regra foi o rei franco Carlos Magno. Analfabeto, Carlos Magno induziu e ordenou a Igreja Católica a se responsabilizar pela alfabetização dos cristãos. Isso lá nos séculos VIII e IX d.C. A Igreja relutou, mas também percebeu que a educação deveria ser usada para manutenção das ordens políticas e sociais. Essa Educação conformativa, que ensina saberes voltados para a conservação dos poderes e das relações sociais foi semelhante por quase 2000 anos! Mesmo as transformações na Educação da segunda metade do século XIX – geradas pela necessidade do capitalismo de ter “mão de obra” minimamente qualificada, no fundo, visava também manter a estrutura social. A nobreza perdia espaço e a burguesia assumia o comando das sociedades e os saberes militares e para guerra davam lugar ao ensino técnico e administrativo.
É em algum lugar entre o início e o fim da primeira guerra mundial que surge a necessidade do ensino público gerenciado pelo Estado para construção do sentido de Nação. É conhecida a frase de Mussolini de que a Reforma Gentile, na Itália, era a “verdadeira reforma fascista”. O fascismo usava a educação, defendendo sua gratuidade e universalidade, como ferramenta de transformação social a partir da sacralização da ideia da “nação”. É somente após a segunda guerra mundial, e a partir da experiência soviética, que se pensa a educação como voltada para transformação da sociedade a partir da lógica da DIMINUIÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL. Toda a educação burguesa, desde “Émile” de Rousseau, até os planos da Alemanha de Weimar, eram voltadas para O AUMENTO DA DESIGUALDADE. A educação para os pobres era uma, a para criar trabalhadores minimamente funcionais era outra, e assim por diante. Às elites também era reservada uma escola específica com saberes voltados ao preparo das classes dirigentes.
Espera-se de um governo de esquerda que retome o paradigma da educação como ferramenta de luta contra a desigualdade. Uma educação que possibilite a ruptura das barreiras sociais pelos grupos marginalizados. Uma educação que tenha como base o investimento maior exatamente onde se tem menos acesso aos recursos e, pela lógica da composição do gasto público, agir de forma a minorar as condições de pobreza e desigualdade. Paulo Freire no Brasil afirma que isso não é sustentável sem uma educação “libertadora” que também se comprometa com a crítica social e fazer compreender aos educandos o real espaço social que eles ocupam e permitir a eles dizer o espaço que gostariam de ocupar.
O NEM nada disso faz. Ao contrário, retoma o modelo ontológico da educação da burguesia do século XIX através de um artifício escabroso: a ideia irreal de liberdade. O primeiro passo de Marx para construir sua reflexão sobre o mundo se dá em “A Ideologia Alemã”. Neste livro Marx mostra o perigo de se utilizar uma ideia sem materialidade como guia das posições sociais e políticas no mundo. A “ideia descarnada” da liberdade parece dar aos educandos brasileiros – pelo NEM – a possibilidade de “escolher os seus destinos”. Na realidade, o rebate daquilo que está no mundo das ideias liberais para a realidade brasileira acaba por DIMINUIR as oportunidades e os caminhos para a juventude brasileira. Sobretudo a mais pobre.
Se, por um lado, as escolas de elite (e existem escolas de elite públicas também) poderão ofertar diversos itinerários, diversos saberes que incitam competências importantes para o século XXI, as escolas mais pobres (que são a imensa maioria da rede pública) vai ser liberada para oferecer “o que dá”. Uma visita à escolas públicas de periferia de Brasília serviria para o presidente Lula perceber isso (e já deixo a ele aqui este convite).
Gestores da educação brasileira (prefeitos e governadores) historicamente não gostam de investir na educação, e usam qualquer subterfúgio para economizar nessa área. Agora, com o NEM, em mais de 90% das escolas públicas no país os gestores não precisam mais pagar professores de história, filosofia, sociologia, artes, educação física, biologia e etc. Basta não ofertar esses “itinerários” (alegando falta de interesse ou mesmo impossibilidade material) e trocar por amenidades quaisquer. Desde que se mantenham as 1000 horas/ano, o que compuser essas horas é desimportante ao NEM. Da liberdade que se prometeu aos estudantes (na época do golpe de Temer) surge uma prisão social que UTILIZA A EDUCAÇÃO E A ESCOLA PÚBLICA como forma de CONSERVAÇÃO SOCIAL E MANUTENÇÃO DAS DESIGUALDADES.
O NEM é, pois, fundamentalmente contrário a QUALQUER ideal de educação defendida pela esquerda e não pode ser remendado porque sua lógica interna é tóxica e busca voltar ao tempo em que se utilizava a educação e a escola para manter o pobre pobre, o trabalhador submisso e as elites dirigentes. Estamos todos os comprometidos com os ideias de esquerda avisando que essa será a marca do terceiro governo Lula se o presidente mantiver esse devaneio. Não haverá razão ou motivo que será capaz de aliviar o ódio dessas populações excluídas quando avaliar a nossa ação política hoje.
Bolsonaro tentou matar o sonho de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire, mas, a continuarmos nesse caminho, será um governo de esquerda que vai encarcerar os mais pobres na condição de submissão passiva na sociedade do século XXI. O custo da teimosia do MEC na vilania neoliberal será pago na frustração social e política dos nossos jovens nos próximos 20 anos. Não posso ser um carcereiro de sonhos da nossa juventude, mentindo a eles que isso é “liberdade”. Essa técnica já foi denunciada brilhantemente por Marx no século XIX. Não se pode ignorar. Não se pode compactuar.
Na educação do modelo do NEM, saímos do fundo bolsonarista para o fosso neoliberal.
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