Do conflito à integração: a transformação da esquerda latino-americana
O Partido dos Trabalhadores nunca se disse "marxista" ou "socialista desta ou daquela tendência". Nem mesmo o congresso convocado para isso, chegou a essa definição. Dada à sua conhecida proximidade com os novos movimentos sociais, com boa vontade poderia ser descrito – nas circunstancias brasileiras - como um partido (não-leninista) de "novo tipo": laico, democrático e de massas
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Acabo de receber um presente valioso, o livro do historiador e cientista político Rodrigo Freire, professor da Universidade Federal da Paraíba. A obra reproduz integralmente a tese de doutorado em sociologia política, defendida pelo autor na Universidade de Brasília, sob a orientação do americanista David Fleischer. Trata-se de um livro que faz um estudo comparado da evolução histórica e política do Partido dos trabalhadores e do Partido socialista chileno, mostrando convergências e divergências. O livro, que se divide em 6 capítulos, estuda desde a fundação dos dois partidos, passando pelas inúmeras transformações organizacionais que sofreram e termina por uma avaliação do governo petista e socialista, no geral benevolente.
O que nos interessa, neste artigo, é a parte dedicada ao Partido dos Trabalhadores, sobretudo nas duas gestões do governo LULA. Uma primeira observação se impõe ao leitor atento em compreender a trajetória do PT é aquela sobre as origens do partido. Há um consenso entre os estudiosos de que o Partido dos Trabalhadores não é e nunca foi um partido de esquerda "marxista-leninista "ou ligado à Terceira Internacional Comunista. Ao contrário da formação dos partidos comunistas, dentro e fora do Brasil, o PT é o produto da confluência de vários atores políticos: os sindicalistas do ABC (dentre os quais, se destaca LULA), a esquerda católica – ligada à teologia da libertação e as comunidades eclesiais de base- intelectuais dissidentes do comunismo e do socialismo real e grupos minoritários de orientação marxista que terminaram se alojando no PT (os trotskistas, os remanescentes da esquerda militar etc.).
O Partido dos Trabalhadores nunca se disse "marxista" ou "socialista desta ou daquela tendência". Nem mesmo o congresso convocado para isso, chegou a essa definição. Dada à sua conhecida proximidade com os novos movimentos sociais, com boa vontade poderia ser descrito – nas circunstancias brasileiras - como um partido (não-leninista) de "novo tipo": laico, democrático e de massas. Até na sua estrutura organizativa permissiva à existência das "frações" subpartidárias.
Segundo o autor, a despeito de suas várias correntes internas, uma sempre foi majoritária e deu o tom da linha partidária: a ARTICULAÇÃO, depois BRASIL NOVO, que corresponde à liderança de LULA e seus velhos companheiros de militância sindical. Há quem afirme ser a ARTICULAÇÃO a cara do PT, dada a influência do ex-presidente na definição dos rumos do partido. Segundo o livro, 1995 é uma data de inflexão ou deslocamento do programa partidário petista: antes disso, tinha o PT uma fisionomia mais à esquerda, mais socialista, menos inclinada a alianças com partidos e grupos de centro-direita. O ponto alto dessa fase foi a campanha presidencial de 1989, contra Fernando Collor de Mello, apoiada pela grande maioria da intelectualidade brasileira.
Nesta campanha, diz-se que o Partido dos trabalhadores foi amplamente hegemônico na batalha das ideias, embora não tenha ganho a eleição. Depois de três derrotas consecutivas, houve uma mudança de agenda política e das alianças. Tratando-se de um pais de base federativa, com inúmeros partidos, alguns estadualizados; e um sistema eleitoral permissivo no que diz respeito às improváveis coligações partidárias, os maiorais do partido, José Dirceu à frente, tomou-se a decisão de ampliar o arco das alianças, incluindo os partidos de centro-direita e a modificação do discurso político em relação ao mercado, aos contratos, a globalização, o mercado financeiro internacional etc. Estratégia esboçada na "carta aos brasileiros", apresentada pelo então candidato LULA, em meio a uma grande crise cambial provocado pelo governo do PSDB.
Importa, agora, destacar uma característica política do presidente LULA que foi um aprendizado do seu tempo de líder sindical das greves do ABC: o pragmatismo e a capacidade de negociação, acima de tudo. Segundo o autor do livro, o que definiu o tom do discurso do governo petista, longe de qualquer doutrina socialista ou política, foi a sua capacidade de negociar e concertar acordos com os vários atores políticos e econômicos. A começar pela composição da própria chapa presidencial, com a presença de um grande industrial têxtil e membro da Igreja Universal. Naturalmente, esta capacidade se manifestou na composição do ministério e da base parlamentar, primeiro com o PTB. Depois, com o PMDB.
É preciso dizer, que apesar ou por conta dela, essa engenharia política não impediu o autor de realizar uma avaliação muito positiva do governo petista: seja no combate às desigualdades sociais e regionais, na redução do endividamento externo, no aumento das exportações brasileiras, na redução das taxas de juros, na revitalização da indústria naval e petrolífera, na questão agrária, na política externa multilateral e no aumento do protagonismo diplomático do Brasil no mundo e na América Latina. Tudo isso, no céu de brigadeiro da economia internacional, teria levado a agradar "gregos e troianos".
É aqui onde Rodrigo Freire lança a sua hipótese conclusiva, destinada a despertar alguma controvérsia. Com essa política híbrida o Partido dos Trabalhadores teria se transformado num partido "eleitoral-profissional", típico da competição eleitoral por cargos e mandatos, mas com cara "social-reformista", como o chileno, sem precedentes na América Latina. Mesmo sem nunca ter havido "Estado de bem-estar social" no subcontinente, o PT seria uma variante latino-americana de um partido, que embora aceitando o mercado, a propriedade privada, o capitalismo, a globalização etc... teria posto em prática – pioneiramente – reformas sociais importantes, além das políticas de ação afirmativas , que ajudaram a diminuir as desigualdades sociais e a gerar oportunidades para os mais pobres e desafortunados no país.
Para aqueles, que desde de início não viam no Partido nenhuma veleidade revolucionária ou insurrecional, vis-à-vis com os antigos partidos marxista-leninistas, mas que viam com bons olhos a chegada de um partido socialdemocrata no Brasil, naturalmente uma avaliação como esta é perfeitamente compreensível. A opção de inclusão social pelo acesso aos bens de consumo, com o apoio no fundo público, no crédito subsidiado e na isenção fiscal, realizado pela ex-presidente Dilma, no seu primeiro mandato, se encaixaria bem nessa modalidade de "reformismo social".
A questão que fica por elucidar são os limites políticos, econômicos e sociais de tal reformismo social, considerando a mudança da cena política internacional e a grave crise econômica interna no país. Uma opção talvez não bastante republicana para evitar que cidadãos e cidadãs-consumidores possam se voltar, em curto espaço de tempo, contra a democracia, o socialismo, o direito das minorias e a laicidade do Estado brasileiro.
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