Do caos, nasce uma nova estrela

No mesmo instante em que Dilma, de blusa branca - alva como uma nuvem - caminhava do lado de fora e era afagada pelo povo, dentro do Planalto os novos inquilinos - ternos negros como as asas da graúna - aplaudiam a oficialização do golpe, enquanto lambiam os beiços

Brasília - DF, 11/05/2016. Presidenta Dilma Rousseff durante declaração à imprensa. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR
Brasília - DF, 11/05/2016. Presidenta Dilma Rousseff durante declaração à imprensa. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR (Foto: Lelê Teles)


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façamos como o semiólogo, vamos direto às imagens.

PALÁCIO DO PLANALTO. EXTERNA, DIA

Brasília amanhece revestida de uma tímida, uma tênue luminosidade. 

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Dilma, pedestre, deixa temporariamente o Palácio no qual dava expedientes, caminhando ao largo do espelho d’água - séquito volumoso a segui-la.

conhecedora do poder simbólico das imagens, ela evita a descida pela rampa.

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a presidenta - que antes de deixar o palácio deixou ecoando pelas paredes a palavra golpe - não daria de mão beijada aos manipuladores da informação uma imagem que pudesse ser associada a um rito normal e constitucional de transição de cargo.

saiu pela tangente.

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não que ela tenha se retirado pelos fundos, como o fez covardemente o general Figueiredo; ou amparada por uma vergonhosa cabeça baixa, como outrora fizera o irascível malfeitor Fernando Collor.

Dilma foi aos braços do povo e para ele falou, humanizando-se: “sinto a dor da traição.” 

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vilipendiada, arrastada do poder pelos cabelos, ela encarnou a força e a determinação das mulheres. manteve-se firme.

conclamou o povo à luta, pela democracia e contra os usurpadores.

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deixou claro que vítima de uma injustiça. uma mulher honesta julgada por um grupo de desonestos, condenada por não ter cometido crime algum, punida por corruptos por combater a corrupção.

essa é a narrativa que estará cada vez mais presente nas ruas.

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corta.

PALÁCIO DO PLANALTO. INTERNA, DIA.

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no mesmo instante em que Dilma, de blusa branca - alva como uma nuvem - caminhava do lado de fora e era afagada pelo povo, dentro do Planalto os novos inquilinos - ternos negros como as asas da graúna - aplaudiam a oficialização do golpe, enquanto lambiam os beiços. 

exangue, pálido como um vampiro, e com um sorriso aterrador como o do próprio Conde Drácula, Temer ascendia ao píncaro da República, computando raquíticos 55 votos senatoriais, ou sanatoriais. 

às vésperas de uma sexta-feira 13, Temer afana, ao vivo e em cores, 54 milhões e meio de votos e gargalha, mostrando a língua bifurcada e incandescente. 

no interior do Palácio, farto séquito emoldura a cena sombria. 

vestidos de negro como mil corvos, aquela malta de ministros sinistros mais parecia o rabisco da inédita gravura da Demoníaca Ceia: satanás ao centro, mil judas ladeando-o. 

nenhuma mulher, nem um único negro. era o símbolo da intolerância à diversidade.

o macho branco estava de volta ao poder.

essa era a mensagem.

fade out.

ISRAEL. EXTERNA, DIA.

à mesma hora em que Dilma sai do Planalto e Temer entra, uma outra cena se desenrola em Israel.

dois mil e dezenove anos depois do batismo do Cristo, Bolsonaro, o anti, profana as águas do Rio Jordão. 

num simulacro batismal, um João Batista de araque, um canalhíssimo impostor evangélico, mergulha o anticristo nas gélidas águas leitosas.

apóstolo do evangelho do ódio, branco, heterossexual, homofóbico, misógino, racista e ególatra, Bolsonaro encena o terceiro rito de passagem do dia.

rito de grande força simbólica.

porque escolhido para dar o caráter metafísico para toda aquela pantomima do golpe paraguaio.

Deus - e se esse velhote existisse não o permitiria – está a ser usado como testemunha legitimadora daquele bando que tomou o Planalto de assalto.

num momento de grande comoção nacional, Bolsonaro aparece mimetizado num Cristo com uma pistola na cinta. 

matéria vastíssima para o semiólogo.

acrescento uma mais.

não se banha duas vezes no mesmo rio, como diria Heráclito; as águas passam, passa o rio.

portanto, as águas que batizaram o Mestre dos mestres há muito correram dali. 

Bolsonaro se banhou em águas tão profanas quanto as do Tietê.

não havia ali nem um resquício daquela magia hidráulica que envolveu João e Jesus. 

tudo aquilo era apenas encenação barata, poderia ter sido feito dentro de um estúdio sem o menor prejuízo fílmico.

assim, canalhíssimamente, os vendilhões do templo batizam seu novo messias.

mas é bom frisar. as forças progressistas nunca estiveram tão fortes e unidas. 

toda aquela convulsão catártica que antecedeu o golpe, fez nascer uma nova esquerda, rejuvenescida.

e não é mais somente aquela esquerda de barbudos, operários e ex-hippies aburguesados.

é um coletivo das mais diversas colorações, etnias, classes sociais, faixas etárias e orientação sexual.

em meio ao caos, nas ruas, na luta, uma grande frente de esquerda se formou, diversa e inclusiva.

fazendo sombra ao agora velho petismo burocrático. 

não é que a estrela do PT se apagou, é que surgiu no horizonte uma seminova ainda mais brilhante.

é do caos, como observaram Chaplin e Nietzsche, que nasce uma nova estrela.

palavra da salvação.

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