Do alto da torre de observação: as loucuras da história

"A transformação do dólar americano em arma está levando a Rússia, a China e o Irã, assim como a Turquia, a Síria e a Venezuela, a impulsionar seriamente suas buscas por alternativas", escreve o jornalista Pepe Escobar. "Tudo o que acontece em termos geopolíticos e geoeconômicos em nossos tempos turbulentos tem a ver com a luta imperial estadunidense do tipo 'faça ou morra' contra a parceria estratégica entre a Rússia e a China"



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Tradução: Carolina Ferreira

"Deve haver alguma saída desse lugar",
Disse o coringa ao ladrão.
"Há confusão demais;
Não consigo nenhum alívio.

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Homens de negócio bebem meu vinho;
Aradores cavam minha terra.
Nenhum deles
Sabe quanto vale uma parte disso."

-Bob Dylan, All Along the Watchtower (imortalizada por Jimi Hendrix)
[Fonte da letra traduzida: https://lyricstranslate.com]

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Nada supera os sorrisos sedutores e pétreos no templo de Bayon, perto de Angkor Wat, em Siem Reap, Camboja, para mergulhar no vórtice da história, reimaginando como os impérios, em sua busca incessante por poder, ascendem e caem, geralmente porque atraem a própria guerra que tentaram evitar.

O Bayon foi construído como um templo estatal no final do século 12 por Jayavarman VII, estrela indiscutível do império Khmer. Seus relevos narrativos mágicos transmitem uma mistura de história e mitologia enquanto retratam a vida cotidiana na sociedade khmer.

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Ainda não sabemos hoje a identidade dos rostos mostrados nas gigantescas esculturas de pedra do templo. Eles poderiam ser uma representação de Brahma, ou do próprio Jayavarman – um budista praticante. O que sabemos é que o glorioso império Khmer – incomparável em termos de arte e arquitetura, e até mesmo benigno no sentido de que o mandato de poder era baseado na relação do rei com os deuses – começou a se desvanecer após o século 15, desmembrado pela guerra contra os tailandeses e, posteriormente, contra os vietnamitas.

Os sorrisos pétreos “do alto da torre de observação”, exibidos como uma ilustração viva da ascensão e queda de impérios, poderiam facilmente se conectar, geopoliticamente, com um toque de impermanência budista, aos tempos turbulentos da Guerra Híbrida. E para o atual império estadunidense.

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É sempre divertido observar como os think tanks estadunidenses, como a Stratfor, da CIA, celebram constantemente o sucesso de minar a Rússia por meio dessa estratégia.

A Guerra Híbrida contra a Rússia foi projetada em 2014 em duas frentes: ordenavam que os petro-poodles do Golfo Pérsico derrubassem o preço do petróleo, enquanto impunham sanções depois que a Rússia se opôs ao golpe – na verdade, uma revolução colorida – em Kiev. A guerra híbrida foi projetada em um nível de ‘Estado Profundo’ como uma ferramenta para tentar esmagar a recuperação excepcional da Rússia desde que Vladimir Putin foi eleito para a Presidência em 2000. O objetivo, no estilo indisfarçável de “O Grande Tabuleiro de Xadrez”, de Zbigniew Brzezinski[1], com o golpe de Kiev, foi levar a Rússia a uma guerra partidária no estilo afegão.

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É claro que a Rússia sofreu economicamente – mas depois se recuperou lentamente, diversificando a produção e aumentando sua capacidade agrícola. No entanto, a guerra híbrida sempre garante que, uma vez que a dificuldade econômica seja projetada, um governo necessariamente se torna impopular. Então falsificações e traidores são liberados: Alexei Navalny, na Rússia, ou "protestos" em Hong Kong, que os sonhos do ‘Estado Profundo’ levariam a uma revolta em Pequim.

Um pequeno e radical núcleo de agentes provocadores em Hong Kong, usando métodos copiados da Praça da Independência – ou Maidan – em Kiev, mantém um roteiro unificado: forçar Pequim a cometer um Tiananmen 2.0, elevando assim a demonização total da China para o próximo nível.

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A consequência inevitável, de acordo com o cenário privilegiado, seria o "Ocidente", bem como vastos setores do Sul Global, boicotar a Nova Rota da Seda, ou a Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota, uma complexa estratégia de integração econômica em várias camadas que se expandiu bem além da Eurásia.

Hong Kong, um ativo irrelevante

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Em Hong Kong, tudo se resume ao dinheiro e, então, em um segundo nível, à China. 

O PIB per capita anual da China está na faixa de US$ 9.700. O PIB per capita anual de Hong Kong está na faixa de quase US$ 49.000 – maior do que o da Alemanha e do Japão. Não é de se admirar que ninguém em Hong Kong queira ser “como a China”. Portanto, o dinheiro é um fator-chave para que a população de Hong Kong tema a “dominação chinesa”. Apenas alguns estrangeiros, como o economista tailandês Chartchai Parasuk, destacam isso.

Hong Kong está se tornando cada vez mais irrelevante para a China. Na época dos “tigres asiáticos”, louvados pelo Banco Mundial, no início a meados da década de 1990, a participação de Hong Kong no PIB da China era de robustos 27%. Hoje, são apenas 2,7%.

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Hong Kong tem perdido importância para a China (Foto do arquivo: Creative Commons/Brian H.Y.)

O capital tem se movido constantemente para Cingapura, cujo PIB per capita anual é agora ainda maior do que o de Hong Kong. Os salários reais são agora mais baixos do que no início da década. E os ricos chineses continentais estão comprando tudo o que veem, excluindo assim a média de Hong Kong de uma trajetória de mobilidade ascendente. 

Até agora, o fascínio de Hong Kong, para a China, era sua posição única como um megaporto de livre comércio, a porta de entrada proverbial para o continente e um dos principais mercados financeiros do mundo. Mas isso está cada vez mais no passado. Shenzhen, do outro lado da fronteira, já é o principal centro tecnológico da China, e Xangai está sendo lenta, mas seguramente, configurada como o principal centro financeiro.

A China também está sendo atingida, no estilo de guerra híbrida, por uma guerra giratória comercial e por sanções. O derradeiro “sonho” imperial americano é projetar um vassalo chinês. Isso nada tem a ver com o comércio. Não há lógica em evitar um déficit comercial com a China apenas para ver os mesmos produtos produzidos na Tailândia ou na Índia. O que está acontecendo é uma guerra híbrida por todo o espectro: tentativas de desestabilizar e possivelmente derrotar a Rússia, a China e o Irã, os três principais centros de integração da Eurásia.

Nova política híbrida

A estratégia da Guerra Híbrida criou nosso atual estado de guerra financeira. E isso inevitavelmente implica um contragolpe. A transformação do dólar americano em arma está levando a Rússia, a China e o Irã, assim como a Turquia, a Síria e a Venezuela, a impulsionar seriamente suas buscas por alternativas. Eles poderiam ser ancorados em uma cesta de commodities, ou tudo poderia se resumir a ouro. Jim Rickards, investidor da Wily, define a Rússia, a China, o Irã e a Turquia como o "Novo Eixo de Ouro".

Tudo o que acontece em termos geopolíticos e geoeconômicos em nossos tempos turbulentos tem a ver com a luta imperial estadunidense do tipo “faça ou morra” contra a parceria estratégica entre a Rússia e a China. Somente a "vitória total", por qualquer meio necessário, asseguraria a continuação do que poderia ser definido como o Novo Século Americano.

E isso nos leva à necessidade de reconstruir o axioma de Clausewitz, segundo o qual, originalmente, a guerra é uma continuação da política por outros meios.

Clausewitz argumentou que a guerra é um instrumento político real. Ora, em Clausewitz remixado, leia-se: Guerra Híbrida é Política por Outros Meios.

Os meios agora vão muito além da guerra convencional, como nos tempos do império Khmer. Eles misturam guerra irregular e cibernética; fake news; lawfare – ou guerra jurídica – (como no Brasil); intervenção eleitoral; e até mesmo a “diplomacia” (do tipo canhoneira ou de bloqueio econômico, como aplicada contra o Irã e a Venezuela).

Do alto da torre de observação, a canção, escrita por Dylan e executada por Hendrix quando um furacão se aproximava, é um presságio sinistro de Apocalypse Now. Entoada ao longo das pedras do Bayon, sorrindo enigmaticamente para nós através de séculos de história que desafiam a impermanência, parece tão apropriada para os nossos tempos de Guerra Híbrida.

Atenção: cavaleiros pálidos estão se aproximando, enquanto o vento começa a uivar.    

[1] O Grande Tabuleiro de Xadrez: A Primazia Americana e seus Imperativos Geoestratégicos (1997) [https://tinyurl.com/y5c97phe]

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