Ditadura não é uma questão de semântica

A infeliz fala do excelentíssimo senhor ministro não foi palavra jogada ao vento, nem dita aleatoriamente. Trata-se, isso sim, de uma retórica inserida em um conjunto de discursos que se dão no âmbito da política da pós-verdade, que se caracteriza por tentar reescrever os fatos que não são favoráveis aos donos do poder, deturpando as narrativas históricas

Ministro Luiz Eduardo Ramos
Ministro Luiz Eduardo Ramos (Foto: Marcos Corrêa/PR | Wikimedia Commons)


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Dicionários como o Aurélio (2010), por exemplo, nos dizem que a palavra semântica (ver página 1909) vem do grego semantiké, que é a arte da significação e, por conseguinte, o estudo das mudanças ou translações sofridas, no tempo e no espaço, pela significação das palavras. O mesmo dicionário também registra, à sua página 731, que ditadura é a forma de governo em que todos os poderes se enfeixam nas mãos dum indivíduo, dum grupo, duma assembleia, dum partido ou duma classe. Diz ainda tratar-se de um regime que cerceia ou suprime as liberdades individuais.

As definições acima são necessárias à reflexão que trazemos, a partir da fala proferida pelo general Ramos, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, que em audiência na Câmara dos Deputados afirmou que a classificação — ou não — do período entre 1964 e 1985 como uma ditadura militar é uma questão de "semântica" — ou seja, algo que depende de interpretação pessoal. Disse ele: "Eu diria que foi um regime militar de exceção, muito forte". Imerso no universo de notícias que nos adoecem cotidianamente fiquei pensando como a declaração de um militar de alta patente, como o excelentíssimo senhor ministro, membro importante de um governo democraticamente eleito, seria recebida pelas instituições argentinas, uruguaias ou chilenas. A conclusão é que algumas coisas só podem ser ditas e feitas aqui, no Brasil. 

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A declaração estapafúrdia do general ministro fez Michel Pêcheux (1938-1983), autor de Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (1975), se remexer na tumba.  Mais da metade dos historiadores do mundo, por sua vez, momentaneamente colapsaram, e ainda teimam em não acreditar no que leram na mídia, pois sabem muito bem que a ditadura civil-militar brasileira não é, nem nunca será, uma questão de semântica, uma vez que às perseguições, atentados, aprisionamentos, desaparecimentos, torturas e assassinatos ocorridos no período de 1964 a 1985, não cabe, em hipótese alguma, qualquer forma de “interpretação pessoal”, pois tratam-se de inquestionáveis fatos, não de ficção. Assim, ao se tentar tomar como aceitável o inaceitável dito pelo senhor ministro, também ter-se-ia que conceber a escravização de homens e mulheres livres, o holocausto ou os genocídios que ocorreram, e ainda ocorrem mundo afora, como meras questões de semântica. Logo, o que defende o general não fica de pé, pois não se sustenta historicamente, tendo em vista que a ditadura civil-militar brasileira, como qualquer outra forma de repressão, não se constitui como questão metafórica, muito menos semântica. Afirmar tal coisa é tripudiar sobre a dor da perda, minimizando uma das maiores aberrações praticadas pelos agentes do Estado brasileiro.

A infeliz fala do excelentíssimo senhor ministro não foi palavra jogada ao vento, nem dita aleatoriamente. Trata-se, isso sim, de uma retórica inserida em um conjunto de discursos que se dão no âmbito da política da pós-verdade, que se caracteriza por tentar reescrever os fatos que não são favoráveis aos donos do poder, deturpando as narrativas históricas. Assim, à guisa de conclusão, sugerimos que os defensores de tal necropolítica venham a público e digam às centenas de milhares de famílias que não puderam enterrar seus filhos e filhas, que eles e elas foram presos e, semanticamente, torturados e mortos. Ao contrário do que pretendem, a semântica não lhes serve de álibi. 

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