Ditadura, ficção e memória
Ressignificar o passado é também construir novas partilhas, outros mundos onde e quando outras subjetividades possam existir
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Na altura dos meus 70 anos, notei que a partir de certa idade a nossa memória é histórica. Mas para um escritor, o maior trabalho é narrar essa memória que se fez histórica. A seleção de acontecimentos, a sua organização em destinos e pessoas/personagens, é difícil. E mata de dor ou renova sobre a dor quem narra o lembrado. Outro fenômeno que observei nos penúltimos tempos foi a ligação indissolúvel entre o passado e o presente. Os anos findos, na aparência findos, renascem transformados. O passado não é morto. É vivo, hoje, passou por aqui agora. Disso eu não sabia. Essa descoberta me ocorreu ao escrever “A mais longa duração da juventude”. Para mim, foi uma iluminação, que eu nem imaginava antes desse livro.
E por que escrevo as linhas acima? – É que nesta semana pude ver a crítica do mestre Helder Santos Rocha a meu romance. Na sua fala, vi confirmadas, de um ponto de vista erudito, as linhas da minha intuição. A crítica veio à luz na live da III Jornada de estudos sobre ficção histórica. Como um dos participantes, Helder Santos Rocha apresentou um trabalho sob o título de “Ficção e Memória em ‘A mais longa duração da juventude’”. Acompanhem por favor trechos da sua intervenção.
“No romance de Urariano Mota há cenas de inúmeras reativações do tempo, nele existem propostas estéticas de coparticipação para o leitor do presente, muito mais que informes de acontecimentos do passado ditatorial.
Afinal de contas, como bem nos adverte Vladimir Safatle, precisamos encarar o neoliberalismo como a lógica da destruição máxima da solidariedade e dos laços comunitários. No que tange à memória sobre a ditadura pós-64, a comunidade pode ser uma resistência às perdas arquivísticas dos feitos de indivíduos invisibilizados e esquecidos por uma narrativa oficial em torno da repressão e da militância. A comunidade resiste ainda aos movimentos e gestos neoliberais que buscam só abafar as relações sociais calcadas na solidariedade e no convívio coletivo.
Diante disso, o que significa coviver, conviver? Não apresentamos uma resposta objetiva, mas recorremos às reflexões do próprio romance. Vejamos em dois excertos:
‘Quarenta e seis anos depois a pergunta ganha outro significado. No dia do enterro, com o cadáver saído do necrotério, quando a repórter perguntou ‘quem era Luiz do Carmo?’, eu respondi que para ele ainda não havia soado o momento da justiça. Se a vida passa e os jornais não a percebem, que dirá de uma pessoa fundamental que não é celebridade? Mas o impossível ali eu recupero. Era irônico que, perseguido na ditadura como um terrorista, ainda depois, no tempo dos anistiados, Luiz do Carmo não conhecesse a justiça. Se antes havia tido a negação absoluta de direitos e de leis democratas, agora nos anos de governo eleito pelas urnas, quando podia ir e vir, discursar e escrever, ele continuava sem justiça. Mudavam-se os tempos, mudamos nós, e continuávamos mudos para todos. Pois o reconhecimento público não chegava. Em seu favor, ela poderia dizer que seu hard de famosos merecia receber um upgrade. E o seu chefe, igualmente desconhecedor, a socorreria mais ferino com a frase ‘A memória dos jornais é bem seletiva’. A culpa – se usamos a palavra redutora – era do conjunto da sociedade que esmaga a todos, que pulveriza tudo como um pozinho à toa’.
Segundo trecho:
‘De muitos, que atravessaram na militância clandestina naqueles anos, poderíamos falar de uma Vida Curta e Triste sob o terror de Estado. E de todos podemos dizer que tínhamos vida dupla, uma oculta e outra legal. Sendo mais preciso, tínhamos uma existência legal e uma vida clandestina. Na primeira, mantínhamos uma dolorosa e sufocante aparência de ser, em si mesma uma farsa que representávamos sob ameaça de morte. Na segunda, éramos quase livres, pois mantínhamos um espaço de humanidade, de pessoas apesar da opressão. Uma vida, enfim, que sorria para nós como prometida amante. Era, portanto, na sua negação legal, um suplício de Tântalo. Quando queríamos pegar a flor vermelha, papoula, narcótica e doce, ela se afastava. E quando apressados íamos tomá-la nas mãos, a morte nos imobilizava. Isso conduzia também a uma dupla moral. Os que nos submetíamos à tortura da sobrevivência em trabalho alienante, onde amargávamos ser jovens bobos e calados, estranhos, contribuíamos para os clandestinos que levavam a vida gloriosa. Natural e necessária a contribuição. Natural a glória, porque estavam no front. Mas os da retaguarda estaríamos a salvo se os da frente caíssem? Quase nunca. Se não se vê uma ironia nesta frase, digo que o terror era democrático. A sociedade sem classes que sonhávamos, em uma versão macabra o terror fascista realizava. Onde antes a tortura e o assassinato de presos haviam sido exclusivos de negros e pobres, agora atingiam a todos. Em uma só fila, com faces idênticas, todos éramos terroristas. Assim nos chamavam em infame versão os terrorista de Estado. No entanto, de terror era a vida de animais caçados’.
Se a arte não é o real, tampouco ela se opõe a ele. Diversos textos literários têm tratado do período ditatorial e da sua herança traumática nos últimos anos com maior ênfase, acompanhando as discussões e os questionamentos levantados pelos usos do passado por parte das instituições da sociedade civil.
Eunice Figueiredo propõe a escritura literária, sobre os arquivos da ditadura, que permite imaginar situações e experiências extremas vivenciadas por homens e mulheres durante o período. Na esteira da proposta da pesquisadora, indo um pouco além, os recursos narrativos da ficção também questionam os arquivos existentes, assim como a ausência de outros. Caso em que o romance de Mota parece intervir de forma contundente ao reivindicar a existência de uma comunidade invisibilizada no ontem por necessidade de sobrevivência e no hoje, por manutenção de uma injusta relação com os espectros. Assim, história e literatura não são opostas, mas também não produzem os mesmos efeitos, ainda que utilizem os mesmos materiais de linguagem e de referenciais sociopolíticos. Conforme Jacques Rancière nos induz a pensar, não se trata pois de dizer que a História, com H maiúsculo, é feita apenas das histórias que nós nos contamos, mas simplesmente que a razão das histórias e a capacidade de agir como agentes históricos andam juntas. A política e a arte, tanto quanto saberes constroem ficções, isto é, rearranjos materiais e símbolos das imagens das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer. Nesse sentido, a ficção que dialoga com o passado ditatorial é sintoma e resistência ao mesmo tempo, pois confirma a permanência dos fantasmas, mas combate enquanto arte ativa ou escritura do artivismo os apagamentos forçados do passado.
Portanto, em ‘A mais longa duração da juventude”, o passado é um tempo alargado por opção e confissão do narrador. Diz o narrador:
‘Lembrar? Não, é tão vivo, que a voz me fala: vivemos hoje o que o calendário indica ter ocorrido há 44 anos. E diferente da luz mecânica, congelada, da estrela morta há séculos, as pessoas retornam vivas com significados que não podíamos ver antes. Melhor, não retornam. Elas não saíram de nós. Continuam, na compreensão sobre elas que amadurecemos. São elas, transformadas pelo que delas só agora entendemos’.
A convivência com as lembranças dos companheiros próximos ou não é a esperança que o autor e narrador cultiva, e a partir da forma romanesca, os vírus detentores dessa dívida com o passado, eu, você, nós, ao claro enfrentamento conjunto aos tempos árduos e solitários do presente e futuro.
O romance de Mota não opera a manutenção de uma imagem fixa e cristalizada da militância e resistência do passado. Mas antes, reivindica no presente da escritura e no sempre presente da leitura, espaços na história contemporânea para os pequenos feitos daqueles grandes indivíduos que ele presenciou como resistentes solitários e anônimos. Ressignificar o passado é também construir novas partilhas, outros mundos onde e quando outras subjetividades possam existir.
Uma das cenas marcantes nesse romance que toca na memória coletiva é a chacina da Chácara São Bento, em 1973, Pernambuco, onde seis militantes foram brutalmente assassinados por delação de um infiltrado, que reivindica hoje uma verdade alternativa: o famoso cabo Anselmo. Para quem ainda não o conhece, ele se infiltrou durante muito tempo nos grupos de militância, como a VPR, e entregou, escrúpulo ele não tem nenhum, teve a ação nefasta de entregar a sua própria companheira, que estava grávida, e morreu grávida, que foi a Soledad, que era uma militante paraguaia e viveu no Brasil seus últimos dias. Sobre ela, Urariano tem outro romance.
Eu queria deixar marcado aqui o quanto a gente precisa cada vez mais se conscientizar com essas reflexões e leituras, porque eu acredito que a literatura é muito mais que um passatempo, é muito mais que a mera imaginação do passado, mas uma imaginação do passado para a construção do presente e do futuro. É exatamente para combater essas ‘verdades’ alternativas que esses sujeitos vêm aí a campo dizer que são os donos”.
O vídeo da fala do mestre Helder Santos Rocha aqui:
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