Digam olá para o novo chefão multilateral
Em tempos de grandes tensões geopolíticas, cabe a um verdadeiro estadista subir ao pódio global e neutralizar a atmosfera tóxica de Guerra Fria 2.0. Foi o que fez o Presidente Xi Jinping no Fórum anual de Boao, em Hainan, uma espécie de Davos chinês
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Em tempos de grandes tensões geopolíticas, cabe a um verdadeiro estadista subir ao pódio global e neutralizar a atmosfera tóxica de Guerra Fria 2.0. O Presidente Xi Jinping proferiu sua fala no Fórum anual de Boao, em Hainan.
Aqui vai a íntegra do discurso. E comecemos com uma única frase:
No momento em que enfrentamos a pandemia da covid-19, pessoas de todos os países perceberam com a máxima clareza que é necessário abandonar a mentalidade de guerra fria e os jogos de soma-zero e se opor a qualquer nova forma de guerra fria e de confrontação ideológica.
A plateia em Boao, uma espécie de Davos chinês, era composta não apenas por convidados pan-asiáticos. É significativo que estivessem presentes Elon Musk da Tesla, Tim Cook da Apple, Stephen Schwarzman da Blackstone, e Ray Dalio da Bridgewater, entre outros, ouvindo Xi com a máxima atenção.
Em um discurso relativamente compacto, Xi, mais uma vez, expôs a arquitetura do multilateralismo - e nela se encaixa uma China de volta à posição de superpotência. A mensagem talvez tenha sido sutilmente dirigida ao Hegêmona, mas seus alvos principais foram uma Eurásia em processo de rápida integração e a totalidade do Sul Global.
Xi ressaltou que o multilateralismo é o domínio da justiça, não da hegemonia, que nele ocorrem "consultas amplas", onde os países maiores se comportam de forma condizente com seu status, e com um maior senso de responsabilidade", tudo isso levando a "benefícios compartilhados", e não à prosperidade do 0.001%.
Pequim vê uma economia mundial aberta como sendo o caminho para o multilateralismo – que implica a ausência de "muros" e de "dissociação", com a China abrindo progressivamente sua economia e reforçando a interconexão das cadeias de fornecimento, da economia digital e da inteligência artificial (IA).
Resumindo, trata-se do Made in China 2025 em ação – sem referência à terminolgia tão demonizada durante a era Trump.
O multilateralismo e a economia aberta são os principais componentes da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) – que é não apenas um vasto modelo de comércio/desenvolvimento, mas também o principal conceito da política externa chinesa.
Xi, mais uma vez, teve que enfatizar que a ICR é "uma estrada pública aberta a todos, e não um caminho privado para a propriedade de uma única parte". Trata-se tanto do alívio da pobreza, do crescimento econômico e da "conectividade dura" de infraestrutura, quanto da "conectividade branda", que inclui a "cooperação no controle das doenças infecciosas, na saúde pública, na medicina tradicional e outras áreas".
É bastante significativo que, ao mencionar a adoção das vacinas chinesas, Xi tenha usado dois exemplos do Sul Global: Brasil e Indonésia.
Como seduzir o Sul Global
O enfoque chinês de um novo padrão de relações internacionais se baseia tanto em Confúcio quanto no Tao. Daí a ênfase na ideia de "comunidade de destino compartilhado" aplicada em escala global, e a rejeição de uma "mentalidade de Guerra Fria e de jogo de soma-zero", bem como da confrontação ideológica sob qualquer forma".
O ênfase recai sobre "igualdade, respeito mútuo e confiança mútua" na frente das relações internacionais, bem como no "intercâmbio e aprendizado mútuo entre civilizações". A maioria esmagadora do Sul Global compreende perfeitamente a mensagem.
Nas atuais circunstâncias, entretanto, a realpolitik dita que a Guerra Fria 2.0 já está em andamento, opondo Washington à parceria estratégica Rússia-China. O jogo, na verdade, tem lugar principalmente no Sul Global.
Xi, portanto, deve ter conhecimento de que recai sobre Pequim o ônus de provar que "um novo tipo de relações internacionais" é o roteiro preferencial para o futuro do mundo.
O Sul Global terá pleno conhecimento dos esforços chineses para "redobrar esforços para ajudar os países em desenvolvimento a derrotar o vírus" e "honrar seu compromisso de transformar as vacinas em um bem público global".
Em um nível prático, isso será de importância tão crucial quanto manter a China sob controle no que se refere à promessa feita por Xi de que o estado-civilização "jamais buscará hegemonia, expansão ou esfera de influência, por mais forte que ele venha a se tornar". O fato é que vastas regiões da Ásia pertencem, naturalmente, à esfera da influência econômica chinesa".
A União Europeia estará fortemente focada na "cooperação multilateral em comércio e investimentos" - referindo-se à ratificação e assinatura, no final do corrente ano, do acordo comercial China-União Europeia. E os empresários norte-americanos que acompanharem com cuidado a fala de Xi terão grande interesse em uma promessa sedutora: "Todos são bem-vindos a compartilhar as vastas oportunidades do mercado chinês".
As relações internacionais estão hoje totalmente polarizadas entre sistemas de governança rivais. No entanto, para a maioria esmagadora dos atores do Sul Global, em especial os países mais pobres, o teste decisivo para cada um desses sistemas - como os acadêmicos chineses sabem perfeitamente - é a capacidade de fazer avançar a sociedade e melhorar a vida das pessoas.
Acadêmicos e formuladores de políticas chineses privilegiam o que eles chamam de planos de desenvolvimento SMART (específicos, mensuráveis, alcançáveis, relevantes e temporalmente definidos).
Na prática, isso vem se traduzindo na confiança que a maioria dos cidadãos chineses têm em seu modelo político - sejam quais foram as interpretações ocidentais. O que importa é que o controle da covid-19 na China foi mais rápido que em qualquer outro lugar do mundo; que a economia voltou a crescer, que a erradicação da pobreza foi um imenso sucesso (800 milhões de pessoas saindo da pobreza em três décadas, 99 milhões na zona rural em 128.000 aldeias na etapa mais recente); e que a meta oficial de uma "sociedade moderadamente próspera" vem sendo alcançada.
Pequim, ao longo dos anos, montou cuidadosamente a narrativa de uma "ascensão pacífica" baseada no imenso legado histórico e cultural do país.
Na China, a interação entre ressonância histórica e sonhos futuros é extremamente complexa e difícil de ser decodificada por um estrangeiro. Ritmos passados estão sempre ecoando no futuro.
O que isso significa, em última análise, é que o excepcionalismo chinês - bastante óbvio nos séculos de sua história - baseia-se essencialmente no confucionismo, que define a harmonia como a virtude suprema e abomina o conflito.
E é por essa razão que a China não irá seguir o beligerante passado colonialista do Ocidente hegemônico: essa também foi uma das principais mensagens do discurso de Xi em Boao. Caso Pequim consiga convencer o Sul Global dessa narrativa de "missão histórica" – com atos tangíveis, e não apenas mera retórica - então estaremos entrando em um capítulo inteiramente novo.
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