Desmilitarizar é democratizar o Estado
"Lula exerce sua autoridade, demonstra sua força e sua disposição para colocar os mandos das FFAA alinhados com sua visão", analisa Emir Sader
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Por Emir Sader
O golpe militar de 1964 promoveu a mais radical transformação do Estado brasileiro, que passou a ser radicalmente militarizado. As FFAA se apropriaram do Estado, com os seus altos mandos decidindo os ditadores de turno na presidência, enquanto decidiam quem seriam os militares nos ministérios do governo.
A exceção era dada pelos ministérios da economia e da justiça, ocupados por economistas e por juristas originários das universidades, especialmente da Universidade de São Paulo. Os primeiros para dar os rumos da economia, os segundos para redigir os atos institucionais com que os militares impunham suas decisões.
Impor a ditadura foi militarizar o Estado. Quando terminou a ditadura, os militares se retiraram dos cargos que tinham no Estado. Mas não houve, naquele momento, algo como a Comissão da Verdade, que apurasse tudo o que ocorreu na ditadura, o que só aconteceu bem mais tarde.
Os militares mantiveram a Doutrina da Segurança Nacional desde sua saída do governo. Seguiram se considerando como a reserva de proteção do Brasil em relação ao que tomavam sempre como riscos do país adotar modelos como os da Venezuela, da Nicarágua, de Cuba.
Quando foi rompida novamente a democracia no Brasil, em 2016, os militares voltaram a intervir na política, voltando a ocupar grande quantidade de cargos no Estado. E, no governo de Bolsonaro, também passaram a ocupar cargos fundamentais no próprio governo.
Militares da ativa e da reserva voltaram a dar declarações ameaçadoras, apoiando o novo regime saído de um golpe e ameaçando o Judiciário, caso permitisse a Lula de manter seus direitos políticos.
O governo Bolsonaro foi, cada vez mais, ocupado pelos militares, base das ameaças de Bolsonaro de continuidade do regime autoritário. Um núcleo de militares continuou sendo a referência fundamental da ultra direita, a ameaça de impedir o retorno à democracia no Brasil.
Quando Lula coloca em prática um processo de retomada da democracia no país, faz parte integrante a desmilitarização do governo e do Estado. O cálculo era de vários milhares – entre 6 e 8 mil militares com cargos públicos -, que foram renunciando ou sendo demitidos.
A tentativa de golpe de 8 de outubro acelerou esse processo, porque não apenas as FFAA falharam nas suas funções de proteger as sedes fundamentais do Estado brasileiro como, além do mais, muitos deles foram pilhados participando ativamente das ações de vandalismo daquele dia.
Pelas duas razões – falhas na proteção da presidência da República, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, e participação das ações terroristas daquele dia – Lula intensificou esse processo de desmilitarização.
Fica claro assim, tanto durante a ditadura militar, como na ruptura mais recente da democracia, como a militarização se identificou com a ditadura e o autoritarismo. E como a democratização coincide com o processo de democratização no Brasil.
Lula assume essa nova postura. Afirma que os militares não têm que fazer política. Que, se querem fazer política, tem, literalmente, que tirar as fardas.
Se reuniu com eles, cobrou o cumprimento das suas funções constitucionais e organizou reunião dos militares para tratar da situação dos yanomamis, como que dizendo a eles que há outras tarefas muito importantes que eles podem assumir.
A mudança do comandante do Exército demonstra que faltava completar a constituição dos mandos das FFAA. A tentativa de golpe do dia 8/1 foi um teste para o comportamento das FFAA e das polícias.
Lula reafirmou abertamente a necessidade de punir a todos os que estiveram vinculados ao golpe sejam punidos. Virar a página, mas somente depois das punições.
Fica claro que a substituição do comandante do Exército demonstra a insatisfação de Lula com as medidas tomadas nessa força e com a sobrevivência ainda de gente do governo de Bolsonaro. Lula exerce sua autoridade, demonstra sua força e sua disposição para colocar os mandos das FFAA alinhados com sua visão.
O clima que se vive depois dessa substituição será a primeira prova de como as relações entre o governo e as FFAA se dão neste primeiro mês do governo Lula 3.
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