Desmidiotizando

Minha doutrina, que não é punitiva, mas libertária, parte do princípio de que o midiota é um inocente útil. Jesus, o Cristo, pediria ao Pai que o perdoasse porque ele, efetivamente, não sabe o que faz

Minha doutrina, que não é punitiva, mas libertária, parte do princípio de que o midiota é um inocente útil. Jesus, o Cristo, pediria ao Pai que o perdoasse porque ele, efetivamente, não sabe o que faz
Minha doutrina, que não é punitiva, mas libertária, parte do princípio de que o midiota é um inocente útil. Jesus, o Cristo, pediria ao Pai que o perdoasse porque ele, efetivamente, não sabe o que faz (Foto: Lelê Teles)


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eu, Grão Mestre da Grande Ordem da Cafunagem, em peregrinação internacional, estou a aplicar a técnica do exorcismo em cidadãos que querem se livrar do grande mal da midiotia.

esse terrível demônio.

o que faço é uma espécie de gourmetização do desencapetamento, porque pagam-me bem.

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embora eu não tenha bens, e me alimente somente de gafanhotos e mel silvestre, uso as espórtulas para ajudar os pobres; em verdade, faço caridade com o dinheiro alheio.

estou em Limoges, a cidade das porcelanas, no interior da França.

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há muito não vinha aqui. nessa cidade viveu uma das minhas ex-esposas; a francesesinha gostava de cafunés e foi uma das grandes incentivadoras do meu ascetismo.

seguindo os seus conselhos, tornei-me um misantropo e passei a caminhar em silêncio por montanhas, vales e colinas; sem direção, sem destino.

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levava comigo apenas um exemplar do Les Reveries Du Promeneur Solitaire (Os Devaneios do Caminhante Solitário), de Voltaire, que peguei na biblioteca do castelo onde vivia a avó paterna de minha ex-consorte.

voltar aqui, depois de ter subido e descido o Himalaia com fardos de feno nas costas e de ter lambido os seis sovacos de Shiva, é um sinal de gratidão por essa terra.

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instalei a Tenda da Cafunagem numa linda ponte sobre o rio Vienne, de onde se tem uma bela vista da cidade.

daqui, por uma semana, desencapetarei midiotas, aplicando-lhes as técnicas do cafuné, comprovadamente mais eficazes que a massagem e a acupuntura.

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minha doutrina, que não é punitiva, mas libertária, parte do princípio de que o midiota é um inocente útil. Jesus, o Cristo, pediria ao Pai que o perdoasse porque ele, efetivamente, não sabe o que faz.

lobotomizado pela máquina cretina de emburrecimento e estupidificado pela hipnose coletiva dos media, o midiota converteu-se em um ser reativo sempre à espera de um sinal, de um comando, que o homogeneíze em uma falsa fraternidade, em busca de uma diluição coletiva que o torne humano, livrando-o da grande culpa por seu consumismo indiferente.

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os media criam essa falsa fruição, criando catarses coletivas, superdimensionando a morte de ícones do consumismo e celebridades pops mantenedoras dos valores ocidentais.

o choro coletivo é um atestado de pertencimento à midiotia. são essas lágrimas que lubrificam as engrenagens da máquina capitalista e regam seus jardins e campos de golf.

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o midiota sentimental presta, sem se dar conta, um abjeto serviço que satisfaz os interesses pecuniários de uns salafrários sem alma e sem coração.

ouço passos de saltos femininos. potoc, potoc, potoc...

o dia começara lindo em Limoges, com uma brisa fresca soprando lírica e lepidamente.

magro, sem camisa e com uma calça de linho branco enrolada até o meio das canelas, eu estava deitado em minha cama de pregos, em jejum, como convém a um faquir.

uma jovem afastou o tecido fino com as mãos delicadas e adentrou ao templo do cafunismo.

foi ao pé do meu catre e falou, em tom calmo e reverencial:
Grande Mestre Cafuna, homem de eólica energia, ser versado na língua pássara e encantador de serpentes sapiens; por favor, ajuda-me.

ouvi falar de tua peregrinação internacional, ela prosseguiu, e jamais imaginei que fosses parar aqui nesta pacata cidade.

só um sábio teria o desprendimento de considerar que nas pequenas cidades e até em vilarejos e aldeias, a midiotia grassa.
tanto quanto nos grandes centros urbanos. espalha-se como uma pandemia.

vi, com pesar e com vergonha, o último cartoon feito por Sine, onde ele zomba do pequeno Aylan Kurdi, o sírio-curdo encontrado morto em uma praia turca.

desde o ano passado, fizeram-me crer que o até então decadente Charlie Hebdo exercia sua liberdade de expressão com responsabilidade, elevando os valores da cultura francesa e reafirmando nossa tradição satírica.

encuquei-me quando os media me fizeram sofrer pela morte dos cartunistas no ataque à redação do periódico, sem criticá-los, dizendo que não atiraram apenas em cartunistas, agrediram nossa liberdade de expressão e atentaram contra os valores ocidentais.

uma ladainha ensaiada.

estes mesmos media se encarregaram de fazer uma ginástica semiológica para traduzir as perversões cínicas dos nossos cartunistas, convertendo-as em boas intenções, coisas que no inferno não faltam.

depois de ver o absurdo desrespeito com a criança curda, revi vários cartuns do semanário e – como pude estar cega durante todo esse tempo – vi que se tratava de uma obsessão islamofóbica, racista e xenofóbica.

não sou Charlie, esses sujeitos não me representam; mas fui, marchei pelas ruas gritando que eu era o mesmo que eles, vejo agora o tamanho de minha ignorância.

peço com fervor, oh, grande sábio, livra-me deste mal que me corrói, mas se nada quiser dizer-me, já me dou por satisfeita por ter estado aqui e sentido o seu delicado toque cafúnico em minha cabeça.

só de tocar as suas vestes eu já me sinto curada.
disse isso e calou-se.

respirei, com vagar, a suave brisa que se misturava com o doce perfume que beijava o pescoço daquela linda criatura.

ela deitou-se no tapete e lhe apliquei 33 minutos de cafunés, ronronando um mantra imaginado em mesquitas.

depois, xícaras de chás de ervas e, finalmente, as palavras sapienciais:

Pequena Gafanhota, relaxe.

não há mal neste mundo que não tenha cura. e a tua própria predisposição à cura já te curou.

sei a confusão que está gritando em tua mente, e ela não é gratuita, é orquestrada.

os cães que ladram nos media seguem a Teoria do Caos, criada pelo filósofo Leo Strauss.

querem uma sociedade de baratas tontas: uma hora anestesiadas pela propaganda; outra, ensandecidas.

antes, os refugiados morriam aos montes no mediterrâneo, sem que ninguém estendesse as mãos para salvá-los. de uma hora para outra, viraram todos altruístas acolhedores.

até os alemães, veja que curioso.

ouso usar as palavras de um velho bruxo brasileiro: "há entre o céu e a terra muitas coisas mais do que sonha sua vã filantropia".

a própria imagem do pequeno Aylan Kurdi, lírica, parece montada.

o mar, linda criatura, não costuma se livrar dos corpos naquela posição em que se encontrava o garoto: na vertical e de cabeça para baixo.

normalmente os corpos ficam na horizontal.

atenta para isso.

criaram uma cena ainda mais dramática do que ela realmente era.

veja aquelas cercas de arame farpado na fronteira da Hungria, com milhares de pessoas do outro lado e uns parcos seguranças para contê-las, também era pura encenação midiática.

a Alemanha faz uma campanha para abrigar refugiados: casa, comida e roupa lavada.

sabemos que apenas um terço daqueles refugiados é de muçulmanos fugindo de guerras, a grande parte é de gente fugindo de problemas econômicos na Nigéria, no Mali, no Iraque, na Síria, na Líbia, etc.

é uma forma cruel de contratar mão de obra barata.
lá estão eles, abrigados. e depois da calmaria, a tempestade.
é a teoria do caos.

dizem que cerca de mil muçulmanos atacaram garotas alemãs durante os festejos de ano novo.

por que diabo fariam isso? como se organizaram? como ninguém soube o que tramavam aqueles mil esfarrapados?

a cena, dramática, é o passe livre para que eles sejam vigiados pela polícia, e olhados com reprovação pelos populares, tornando-os cidadãos de segunda classe, a quem só será permitido trabalhar e voltar para o gueto para dormir.

misturar-se, nunca.

como sempre, o Charlie Hebdo endossa essa agenda.

e veja o pequeno curdo Kurdi aparecer de novo, desta vez bestificado.

o cartunista Riss faz um rabisco onde tenta incutir que era melhor aquele molecote ter morrido, porque se crescesse viraria um tarado perigoso, metade homem, metade porco.

criando, a partir dele, uma imagem estereotipada de monstros semi- humanos, semicivilizados e imundos.

Charlie Hebdo obedecia a uma agenda, e Riss segue os passos de Charb.

tu sabes, minha doce diva de porcelana, que Henri Houssel, um dos fundadores do Charlie Hebdo, acusava Charb de transformar o semanário numa latrina sionista e islamofóbica.

lembre-se, Maurice Sine foi demitido do CH por ter chargeado o casamento de um dos filhos de Sarkosy com uma judia. ele mexeu com o status quo, saiu do roteiro e foi sumariamente fuzilado pela burocracia.

o ataque a uma criança parte de uma campanha de criminalização dos refugiados.

o antissemitismo da França, do final do século XIX, converteu-se na islamofobia de hoje. Charlie está empenhado nessa agenda.
a estereotipação dos muçulmanos faz parte da agenda da direita europeia.

aquele desfile de 50 chefes de estado – OTAN – , numa cena cínica e midiática, em Paris, dando suporte ao Je Suis Charlie, era claramente uma forma de dizer quem somos nós e quem são eles.

tanto é que o genocida de Israel fazia parte da trupe dos sobretudos negros, a legitimar o estado policial em França, que acabará por abolir as liberdades individuais de seus cidadãos.

no Leviathan, Thomas Hobbes ensinava que era preferível que o povo renunciasse a algumas liberdades, chegando até o limite de aceitar um Estado tirano, do que mergulhar no caos.
essa é a agenda.

Aylan Kurdi já havia sido usado anteriormente pelo Charlie Hebdo, ainda de forma desrespeitosa e desumana, mostrando que o europeu, cristão, caminha sobre as águas, enquanto o muçulmano afunda.

uma reiteração do nós contra eles, e nós somos sempre melhores que eles.

aquele cartoon feito depois do ataque de janeiro passado, de um francês tomando champagne, todo crivado de bala, mas ainda feliz, não mostra resiliência e nem abnegação do francês, mostra alienação.

é a exaltação do jovem acrítico, consumista e felizão.
disse isso e calei-me.

ela tinha os olhos marejados. apontei com a cabeça o local para depositar a oferta.

deitei-me no meu catre pontiagudo, fechei os olhos e me imaginei no alto do Himalaia, numa bike, descendo em câmera lenta, saltando rampas e fazendo poéticas piruetas.

o vento, fresco, farfalhava as paredes diáfanas da tenda.

ouvi um som que foi se distanciando, potoc, potoc, potoc...

palavra da salvação.

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