Desinformação sobre a dívida dos Estados escamoteia o roubo federal
"É espantoso que, dentre todos os 27 Estados, no mínimo 17 estão em crise financeira aberta, ou perto dela. Portanto não é razoável acreditar que todos os governadores históricos desses Estados tenham sido ladrões e incompetentes. Alguém, como Paulo, que tem aspirações políticas não pode embarcar na estupidez do vulgo que considera todo político ladrão. Houve alguma coisa comum nesses Estados que justifica a situação de caos financeiro atual. No meu modo de entender, segundo expus no livro, a causa comum é a dívida que lhes foi imposta pelo Governo federal. Uma dívida que reputo nula"
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Paulo Rabello de Castro é um desses economistas liberais (ele repele o prefixo neo) com quem se pode conversar sem perda do humor. Combina sem esforço ortodoxia econômica com uma boa dose de desenvolvimentismo, o que não acontece entre neoliberais ideológicos. Mas Paulo Rabello acaba de escrever no JB um artigo sobre dívida dos Estados marcado por preconceitos generalizados, seguindo o pior costume brasileiro de falar sobre tudo e sobre todos com precária base de informação e de fundamento conceitual.
Embora ele se apresente como especialista em dívida dos Estados, vou contestá-lo com base nos meus próprios conhecimentos de especialista sobre o tema. Escrevi há dois anos o livro “Acerto de Contas. A dívida nula dos Estados”, onde mostro que a principal causa da crise financeira da quase totalidade dos Estados é a divida que lhes foi imposta, injustamente, pelo Governo federal, nos idos de 1997. Paulo, ao contrário, acha que a crise se deve fundamentalmente à malversação de recurso e incompetência administrativa.
É espantoso que, dentre todos os 27 Estados, no mínimo 17 estão em crise financeira aberta, ou perto dela. Portanto não é razoável acreditar que todos os governadores históricos desses Estados tenham sido ladrões e incompetentes. Alguém, como Paulo, que tem aspirações políticas não pode embarcar na estupidez do vulgo que considera todo político ladrão. Houve alguma coisa comum nesses Estados que justifica a situação de caos financeiro atual. No meu modo de entender, segundo expus no livro, a causa comum é a dívida que lhes foi imposta pelo Governo federal. Uma dívida que reputo nula.
Antes de detalhar como isso aconteceu, quero contestar outra observação de Paulo. Ele é fascinado pelas virtudes da Lei de Responsabilidade Fiscal que estabeleceu limites para gastos com pessoal e para o endividamento de Estados e municípios. Talvez o desaponte também nisso. Quando essa lei estava para ser aprovada, fiz uma palestra na Escola Superior de Guerra, no Rio, assinalando que a lei, se sancionada, imporia aos Estados uma ditadura financeira. Elio Gaspari estava na mesa e achou que era um exagero meu. Não era. O sistema financeiro público no Brasil serve para tudo, menos para o financiamento do desenvolvimento.
Sabe-se que a manutenção anual de um hospital ou de uma escola custa aproximadamente o mesmo que o custo de sua construção. Se o administrador construir um hospital dentro das normas da LRF, no limite do gasto com pessoal, terá, naturalmente, que equipá-lo. Se fizer isso, estará gastando anualmente o custo de um hospital, sobretudo com pessoal. Mas sua despesa com pessoal estará limitada pela lei. Claro que esse gasto pode ser compensado pelo aumento da receita. Mas se a receita cai, ele tem que fechar o hospital recém-construído para cumprir a norma legal que, de forma imbecil, não reconhece o ciclo econômico ou o ciclo tributário.
Vamos agora à crise dos Estados. Devido a uma imposição do FMI, o Governo FHC decidiu pressionar para o fechamento e a privatização dos bancos comerciais estaduais. A dívida mobiliária dos Estados neles roladas diariamente foi consolidada e transferida aos bancos privados e paga a eles, sem deságio, pelo Governo Federal. Até aí parecia uma operação normal para “aliviar” os Estados da dívida mobiliária. Acontece que, numa operação a meu juízo fraudulenta, a dívida paga sem negociação com os bancos foi transferida de volta aos Estados, para pagamento em parcelas anuais ao Governo, supostamente em 30 anos.
A dívida consolidada dessa forma elevou-se a R$ 111 bilhões. Até 2016 haviam sido pagos pelos Estados R$ 297 bilhões, extraídos de seus contribuintes. A despeito desses pagamentos, restam a pagar R$ 503 bilhões. A impossibilidade desse pagamento pelos Estados é evidente. Contudo, se não pagarem, fica bloqueada sua participação em fundos federais e impedido seu acesso a crédito, além de outras penalidades. A muitos parece razoável que a dívida seja simplesmente cancelada. Mas isso certamente não basta. O Governo federal tem que devolver aos Estados o que lhes foi tirado indevidamente. Temos o que fazer com esse dinheiro. Exporei oportunamente.
O fato é que o Governo Federal não poderia ter transferido a dívida aos Estados. Do ponto de vista federativo, o que ele pagou aos bancos privados com títulos públicos (ou mesmo emissão monetária) quitou a dívida. Esses títulos eram passivo de toda a sociedade, portanto, dos cidadãos dos Estados e Municípios. Não faz sentido que os mesmos cidadãos paguem a dívida de novo. Isso talvez não seja bem entendido por um economista de mercado. Mas para um economista político é óbvio.
É preciso entender que o que foi pago pelos Estados ao longo dos anos não se restringe ao aspecto contábil. É que lhes foi imposto um passivo sem o correspondente ativo. Afinal, a dívida que estava sendo rolada no over dos bancos estaduais já não tinha correspondência alguma com aplicações produtivas. Era uma dívida em grande parte criada pelo Governo Federal com suas taxas extorsivas no over. Mesmo assim, enquanto pudessem ser roladas, não representavam peso para os orçamentos estaduais, que buscavam fontes alternativas de financiamento.
Também à margem do aspecto contábil, o que se rouba anualmente dos contribuintes dos Estados no gerenciamento da dívida não são apenas recursos das sociedades estaduais canalizados para o Governo Federal. Na verdade, são recursos retirados dos orçamentos públicos como uma espécie de desinvestimento em saúde, educação e segurança, as três principais funções dos Estados. E não me venham dizer que a corrupção é mais importante para explicar a crise. Tudo o que Cabral roubou em propinas e superfaturamento, segundo a Justiça, não chegou a R$ 300 milhões. Já o que apenas o Estado do Rio terá de pagar da dívida este ano são mais de R$ 8 billhões!
*Esta coluna é dedicada à Campanha da Fraternidade, cujo tema, este ano, é “Fraternidade e Políticas Públicas.”
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