Desculpem o transtorno
Se você pudesse escolher, o bar da sua rua estaria perto ou longe de sua casa?
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Quem tirou e mandou a foto foi o Almir, leitor e vizinho da casa que vai entrar em obras, na cidade de Santos. Ele detestou o aviso: “DESCULPEM-NOS PELO TRANSTORNO MAS NÃO SE PREOCUPEM, AQUI NÃO VAI SER UM BAR.”
Detalhe, BAR, escrito em letras vermelhas.
O sobrado de esquina fez história no bairro como quitanda, tapeçaria, depois choperia e também casa de família.
Almir é curioso e descobriu o que vem por aí. Um café chique, que a vizinha já chama de café-gourmet.
Meu leitor está preocupado porque adora bar e, pra ele, quanto mais perto de casa, melhor.
“Ali na esquina, seria perfeito.” Lamenta.
Não sou tão apaixonado, mas alguns bares são como amigos, a gente quer sempre por perto. O dia em que conheci o primeiro bar de São Paulo é até hoje inesquecível.
A esquina já era verso e música. Sampa, porém, se mostrava terra estrangeira. Meu amigo Sergio e eu nem sabíamos direito como tínhamos parado ali, no cruzamento histórico da cidade e da MPB. Ipiranga com São João. Que orgulho.
Em 1988, a hiperinflação do governo Sarney assombrava o comércio, que rejeitava o cartão de crédito. Pagamento só à vista, com cheque ou dinheiro.
Ainda sem conta no banco, o que tínhamos era o cartão e, aliviados, vimos na parede de mármore a placa dourada informando que ali o dinheiro de plástico era bem-vindo.
O primeiro chopp paulistano teve o bater de copos, o estalar de línguas e a alegria de dois jovens forasteiros.
Empolgado com a chegada, Sergio sugeriu novos brindes. Vieram infinitas tulipas e os croquetes. Mais elas do que eles.
Sergio, o Sergio F.C., nem imaginava que a partir daquela tarde de inverno, São Paulo seria a sua cidade. A dele, a minha, a de nossas famílias.
O bar e a esquina permanecem vivos como a nossa amizade; resistentes como o velho centro.
Nem todos os botecos têm raízes tão firmes.
Quem diria que as portas altas e de madeira de lei do Supremo iam fechar pra sempre? Bem ali, numa outra esquina de respeito, da Consolação com a Oscar Freire. Pois não só fechou como foi derrubado a golpes inapeláveis de marreta e escavadeira. As janelas escuras, as paredes ocre, tudo pro chão. Que vazio.
Onde hoje se vendem sapatos e bolsas femininas, existia um dos melhores bares e restaurantes do Brasil. Os endinheirados compravam garrafas exclusivas de uísque escocês expostas em prateleiras logo atrás do balcão. Os clientes mais modestos saboreavam caipirinhas deliciosas e chopp bem servido por garçons impecáveis. A feijoada do sábado era suprema e os shows de música no pequeno palco do subsolo, divinos.
Parreirinha, Bar do Davi, padaria Sensação, Bartolo, por que fecharam? Como assim?
Bom de copo, dono de bar, Ricardo Amaral, o antigo Rei da Noite Carioca, surpreendeu o entrevistador num programa de televisão.
- Sabe qual o único ser que aguenta um bêbado?
- O cachorro?
- Não.
- A mãe?
- Mais uma chance.
- O melhor amigo?
- Não, claro que não.
- Quem, então?
- Outro bêbado. Só um bêbado é solidário na manguaça alheia. Tem bêbado que até é engraçado, generoso, mas passa uma hora, uma noite ao lado dele? Bêbado é chato, não tem jeito.
Voltemos à foto. Será que o dono do futuro café confundiu bar com uma reunião permanente de bêbados arruaceiros e quer acalmar a vizinhança?
Na rua em que moro não haveria problema. Um bar vizinho atende de segunda a domingo e durante 24 horas. Isso mesmo, não fecha.
Ali mata-se a fome, acalma-se a sede. Vizinhos se encontram, conversam. O camelô entra e troca dinheiro, o policial carrega o celular, a babá com o bebê no carrinho compra cigarro e isqueiro.
Comenta-se a rodada, sabe-se o resultado do bicho e a televisão muda distrai solitários. Jovens racham litrões. É o bairro inteiro que passa ali, concorda e discorda, se conhece, se informa.
Num sábado desses chega novidade. As mesas da calçada estão juntas, dez homens e mulheres com cavaquinho, tamborim, violão e gogós afinados embalam uma roda de samba e chorinho. Um dos casais rodopia na calçada. Será isso que assusta os vizinhos do Almir? Música no meio da noite, dança no meio da rua?
Pois aqui é antídoto pra zoeira de toda hora. Sofremos com a algazarra das britadeiras de um prédio em construção, com a tortura daquela máquina que desperdiça água nas calçadas, com a deselegância das buzinas.
A gente acha normal, mas não é, não devia ser.
É noite de sábado, a balbúrdia está de folga. Da calçada sobem as vozes e o ritmo. Pixinguinha, Beth Carvalho, Paulinho. Ao vivo, a cores e de graça. Agora é a música de Dona Ivone Lara que visita nossa sala.
Sylvia me chama, boto uma bermuda e descemos para viver a alegria de ser vizinhos de um bar. Um bar feliz, como deviam ser todos os bares do mundo.
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