Dellani Lima, cineasta (realmente) independente

Retrospectiva online celebra a vasta obra independente de Dellani Lima, cineasta da performance, da política e do afeto



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Acho que foi Julio Bressane quem disse que todo cinema no Brasil é, no fundo, independente. Mas é claro que existem cineastas mais independentes do que outros. E um desses é Dellani Lima, que está ganhando uma retrospectiva quase inteiramente onlinena Cinemateca do MAM. São 28 filmes dirigidos por ele (entre longas, médias e curtas), mais dezenas de trabalhos em videoarte e videoclipes, além de participações como ator. Tudo disponível no canal da cinemateca até o dia 31 de março. 

Em texto escrito especialmente para a mostra, o crítico e curador Francis Vogner dos Reis sintetizou: "Fazer em 2022 uma retrospectiva da obra de Dellani Lima é se lançar ao mapeamento da prática e do imaginário, em síntese, do que foram as entranhas do cinema 'independente' brasileiro nas duas primeiras décadas do século XXI. Não há melhor cineasta do que ele para fazermos essa prospecção." (Leia aqui a íntegra do texto). 

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A programação da mostra pode ser conferida aqui. No dia 21 haverá um debate com o diretor, Lila Foster e Ruy Gardnier. 

Nascido na Paraíba, Dellani construiu a primeira fase de sua carreira em Minas Gerais, atuando como músico em bandas punk, cineasta, ator e performer. Artista de múltiplas aptidões, ele costuma dirigir, fotografar e montar vários de seus filmes, bem como assinar a trilha sonora, às vezes com o pseudônimo Tuca. É da fase mineira os seus trabalhos mais radicais, identificados com a estética punk. Francis Vogner dos Reis o classifica como "a maior e tardia expressão do punk" no audiovisual. 

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Mas o punk de Dellani não é simples desconstrução e agressão. Há sempre a presença do afeto e uma atitude política em seus cometimentos mais irreverentes, como demonstram suas videoartes dos anos 2000. Ao se transferir para São Paulo, depois de 2015, seu cinema talvez tenha ficado menos experimental e mais narrativo. São Paulo teria amaciado ou amansado o cineasta punk?, pergunta-se Francis. Mas por certo não ficou mais convencional. Nem capitulou às formas de produção capitalistas. 

A partir do que conheço de sua vasta obra, posso destacar alguns títulos para efeito de ilustração. O Tempo Não Existe no Lugar em que Estamos (2015) exemplifica não só o gosto do autor por belos e longos títulos, como suas marcas autorais vindas da poesia e da performance: uma certa fascinação pela passagem do tempo sobre corpos e edificações, o uso da dança e das ações solitárias como elementos constituintes da dramaturgia.

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O personagem central de O Tempo…, vivido pelo professor de cinema André Gatti, é um ex-repórter fotográfico e também professor universitário que, demitido às portas da aposentadoria e precisando abrir espaço na casa para um neto a caminho, decide desfazer-se de seu acervo de fotografias e equipamento correlato. Na verdade, Aldo precisa desfazer-se do orgulho do passado e pedir emprego a um ex-aluno. Precisa assumir-se como dinossauro que não soube migrar para a era digital. 

À medida que seleciona e descarta seu velho material, é como se Aldo fosse abandonando as suas memórias e perdendo sua alma. O processo culmina num colapso nervoso e numa amnésia. Tratando da dúvida entre guardar o registro das lembranças ou apenas conservá-las no pensamento, o filme aponta para um sentido trágico de esvaziamento e dissolução. De alguma forma, Aldo está sendo cobrado pelas tantas almas que já roubou em sua carreira de fotógrafo, mas ele também personifica o drama dos que não conseguiram fazer a passagem da era analógica para a digital.

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É curioso que, num tempo de tanta onipotência das imagens, Dellani Lima fale, ao contrário, dos seus limites. As fotos que sobraram do descarte não ajudam Aldo a recobrar suas lembranças. Só a confrontação com imagens novas – o parto da neta – vai ser capaz de retirá-lo do estado de letargia. Seu corpo e sua alma vão depender da inauguração de um novo presente, já que o passado se apagou.

Quando vi Planeta Escarlate (2016), pareceu-me um de seus filmes mais bem comportados do ponto de vista narrativo. Na interseção do thriller de terror com a ficção científica, casal se instala numa casa de campo e se sente ameaçado pelo ressentimento de moradores locais e pelo fantasma da ex-namorada do rapaz. Ao trauma das drogas se soma o temor pela aproximação do tal planeta escarlate, cuja aura só poupará os índios de se transformarem em “bombas psíquicas”.

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Esse Melancoliamarinado em cannabis cita sua senha já no estribilho da canção que abre o filme: “Quem é que precisa de uma fórmula precisa?”. Efetivamente, os gêneros se confundem numa trip de regeneração química, voyeurismo erótico e violência latente. Jonnata Doll, parceiro de Dellani na direção, ator principal e autor do argumento, e o músico Edson Van Gogh (no papel do caseiro Ciro) integram a banda Os Garotos Solventes, de Fortaleza. Têm em comum com Dellani um pé no punk rock. A visceralidade desse estilo musical, porém, não é transposta para o filme, a não ser por alguns gritos primais e uma sequência particularmente brutal perto do fim. Na maior parte do tempo, Planeta Escarlate é um elegante exercício de cinema, com uso expressivo da tela panorâmica e atmosfera legitimamente inquietante.

Detenho-me agora sobre três filmes ainda mais recentes, que dão conta da pluralidade de registros praticada por Dellani. Copo Vazio (2019) tem Jean-Claude Bernardet em mais uma de suas atuações desconcertantes no papel do velho e solitário Alan, que recebe um jovem hóspede mineiro (João Filho) em seu apartamento de São Paulo como forma de saldar uma velha dívida para com a mãe dele. O próprio filho de Alan só aparece para pedir ajuda ao pai. Ao mesmo tempo, uma amiga do rapaz recém-chegado o convida para morar com ela e a companheira de apartamento. 

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O título Copo Vazio me pareceu referir-se a esses corpos que necessitam de preenchimento e, mais que isso, de acolhimento numa cidade onde "se trabalha mais do que se ama". Em meio a conversas intimistas levadas com grande propriedade pelos atores surge também uma trama criminal que selará o desfecho da história. As referências à Medeia de Eurípedes ficam um tanto perdidas no filme, que se realiza mais no plano da relação entre afeto e dinheiro, interesse e estima. Numa cena digna de antologia do cinema de ruptura brasileiro atual, Bernardet recebe Gustavo Vinagre no papel de um michê que recusa o pagamento. 

A presença frequente – e política – das drogas no cinema de Dellani Lima assume o proscênio no documentário inédito Eu Não me Calo (2022) sobre ativismo cannábico, que ele dirigiu juntamente com Kátia Caliendo e Rafael Morato Zanatto. Dividido em três atos, aborda as manifestações de rua (Marchas da Maconha e maconhaços) na Avenida Paulista e em favelas cariocas, a atuação da Associação Cultural Cannábica de São Paulo e a militância em prol da liberação da maconha para uso medicinal. 

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Depoimentos e palestras esclarecem historicamente o uso e a estigmatização da cannabis, assim como as razões dos que defendem a descriminalização de sua venda e consumo no Brasil. O já falecido Padre Ticão, o ativista conhecido como Profeta Verde e o deputado petista Paulo Teixeira, além de vários militantes, são as estrelas do filme com seus arrazoados, ferozmente combatidos por congressistas conservadores. 

Eu Não me Calo é filme de ação direta que potencializa as palavras e as performances de quem não se limita a consumir a cannabis na clandestinidade, mas bota a cara no mundo para defender seus direitos. Uma causa que congrega periféricos, negros, LGBTQI+, intelectuais, artistas e políticos. 

Esse documentário estreia na mostra com uma exibição presencial no dia 18 de março e ficará onlinepor apenas 48 horas (25 e 26 de março). Tratamento semelhante vai receber outro documentário de Dellani, As Faces do Mao (2021), que também será exibido na sala da Cinemateca no dia 18 e disponibilizado online nos dias 15 e 16. 

As Faces do Mao, dirigido em conjunto com Lucas Barbi, é um retrato fascinante do músico punk, professor de história e ativista político José Rodrigues Mao Júnior. Escrevi recentemente sobre esse filme aqui.    

Dellani Lima pode ser visto também como ator nos filmes Os Residentes (2010), de Tiago Mata Machado, e Linz, Onde Todos os Acidentes Acontecem (2013), de Alexandre Veras, entre outros incluídos na retrospectiva. 

Sua imersão profunda no cinema contemporâneo brasileiro se refletiu num livro de análise, Cinema de Garagem - Um inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI, escrito em parceria com Marcelo Ikeda e lançado em 2011. Daí surgiria a mostra Cinema de Garagem, realizada em 2012.  

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