Decadência
Refiro-me ao reflexo nulo, na consciência cidadã -partidária ou não partidária- da palestra proferida pelo Deputado Bolsonaro na Sociedade Hebraica do Rio de Janeiro; à indiferença programada com a notícia de que Porto Alegre tornou-se, recentemente, uma das 50 cidades mais violentas do mundo; e à indiferença “espontânea” do Presidente da Petrobrás, sobre a sorte do Polo Naval de Rio Grande
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Um brilhante e não valorizado livro, publicado em 2002, “Razão e Paixão na Política” (Ed.Unb, Jacy A.Seixas “et alii” -organizadores- 286 pgs.) é extraordinariamente importante para desvendar a decadência da subjetividade democrática e republicana, que estamos vivendo no nosso Rio Grande e no nosso país. Três fatos recentes simbolizam esta crise. Bem avaliados, nos ajudam a compreender -neste esterco ético-moral da democracia brasileira que nos foi dado viver- alguns aspectos emblemáticos deste fim e começo de época. Trata-se da decadência republicana de uma República ainda jovem e do abalo visível das noções de solidariedade humana e justiça, que fazem parte da cultura democrática moderna. Esta decadência está no tecido institucional do Estado, tal qual ele está conformado, e instalou-se como modo de fazer política na sociedade civil.
Refiro-me ao reflexo nulo, na consciência cidadã -partidária ou não partidária- da palestra proferida pelo Deputado Bolsonaro na Sociedade Hebraica do Rio de Janeiro; à indiferença programada com a notícia de que Porto Alegre tornou-se, recentemente, uma das 50 cidades mais violentas do mundo; e à indiferença “espontânea” do Presidente da Petrobrás, sobre a sorte do Polo Naval de Rio Grande, somada à informação -dada por ele- que não compete àquela empresa estatal “promover políticas públicas”, mas responder aos acionistas e ao mercado. Três sintomas de um tempo novo e triste, que apenas começa e que ainda temos que penosamente percorrer, como indivíduos e como sociedade, para formar um “foro íntimo” cidadão, mais aberto ao humano. Assim, menos “materialista” e ditado pelo dinheiro, mais fluente à igualdade e à busca de um destino comum.
É claro que numa certa da parte da sociedade, mais habituada a observar com cuidado o que se passa na política e na economia, os episódios causaram estarrecimento. Refiro-me, todavia, ao reflexo destes episódios nos grandes “meios”, que formam a denominada “opinião pública” e o seu reflexo no chamado “senso comum”. Este é composto por aquelas manifestações da subjetividade popular, que atravessam todas as classes sociais, de forma mais ou menos naturalizada e silenciosa, cujas manifestações de solidariedade ao outro, hoje parecem exauridas pela lógica farsesca que propaga a luta contra a corrupção como o componente exclusivo da redenção da nação. Farsa, aliás, que já prepara, impaciente, o nosso Berlusconi local, em moldagem na figura pitoresca do empresário João Dória: ignorante, agressivo e midiático.
Vejamos os fatos simbólicos apontados. Dentre as preciosidades racistas, homofóbicas e fascistas de Bolsonaro, está aquela em que ele assevera que o afrodescendente “mais leve”, no Quilombo, “pesava sete arrobas” e que sequer “serve para procriar” (aplaudido, “mito! mito!). O fato da Capital do Estado ser declarada como umas cidades mais violentas do mundo, que não suscitou sentimento de indignação nos setores mais “incluídos” -formadores da opinião publicada- foi notícia naturalizada como “percalço” do modelo de Governo atual, não avaliado como “custo” humano, de um modelo já aferido pela duplicação de assassinatos. Sobre a fala de Pedro Parente: se a Petrobrás não deve fazer políticas públicas e mobilizar recursos para o desenvolvimento nacional, com emprego e renda (“políticas públicas!”), o que temos é uma estatal dos ricos, que utiliza os recursos da nação para a acumulação privada sem limites, cujos lucros -como é próprio do liberal-rentismo- deslocam-se, em regra, para o menor risco do mercado financeiro especulativo.
Um dos melhores artigos do livro a que me referi na abertura deste texto é “O poder da imaginação: do foro íntimo aos costumes políticos. Germaine de Staël e as ficções literárias”, escrito por Maria Stella Bresciani. Ele estuda a obra desta grande intelectual das luzes, os trabalhos de Mme. de Staël, escritos entre 1795 e 1800, que se assentavam na convicção de que o “foro íntimo é o hábito de curvar-se continuamente sobre si mesmo” e que, a partir dele, operariam -como assevera Maria Stella- “os sentimentos coletivos”, atribuídos à “representação trágica de temas políticos”. A formação de um “foro íntimo” democrático e republicano não seria, como queriam alguns jacobinos, uma imposição do Estado representando a nação, mas partiria dos próprios indivíduos, socializados através de uma relação política consciente com os seus semelhantes, para de forma contratual construírem a nação e a república.
Como este “curvar-se sobre si mesmo”, na sociedade industrial moderna, era formado de forma vinculada ao espaço público, atravessado por movimentos insurgentes democráticos, alguns deles profundamente revolucionários, as grandes narrativas históricas, a partir do Século XIX, parece que não atentaram para como ele poderia evoluir na política democrática do futuro. Logo, não atentaram -também- para os novos processos de elaboração do “foro íntimo”, numa sociedade em que o espaço público seria ocupado pelo consumo manipulado e as movimentações -nas praças e nas ruas- seriam substituídas ou dominadas pela redes e pelos oligopólios da mídia.
“Se ‘a moral é o único dos pensamentos humanos -cita Maria Estella- (pgs.44\45) que demanda um outro regulador, além do cálculo da razão, as paixões públicas, como o amor pela glória, o apreço aos deveres, à dignidade e às virtudes republicanas, constituiriam a alavanca que impulsiona o homem a sair de si mesmo, a procurar a estima na opinião dos seus semelhantes’.” O “foro íntimo”, a moralidade individual, aquele “debruçar-se sobre si mesmo”, transpassaria as regras puras da razão -as normas da República- e então adquiririam sentido (democrático) na regulação feita com o outro: a “opinião” dos semelhantes, como disse Mme. de Staël.
No atual período de decadência democrático-republicana, este “debruçar-se sobre si mesmo” -para a formação do “foro íntimo”- é bloqueado por novos fatores já quando os indivíduos se movem, para conectar-se com a opinião dos semelhantes. Antes, esta conexão era realizada, predominantemente, nas praças e nas ruas, tanto para os dissensos como para os acordos, que faziam as sociedades industriais maduras funcionarem com certa margem de consenso. Hoje, o espaço da política é o mesmo espaço do mercado: tanto pela dinheirização radical da política, quanto pela necessidade dela submeter-se à lógica de dominação do capital financeiro, que faz as regras, tanto da vida privada -pelo mercado manipulado- quanto da vida político-estatal, face ao controle que o capital financeiro exerce sobre a dívida pública.
Esta nova situação, que dificulta a esquerda de disputar a formação de um novo “senso comum”, talvez explique as novas formas de golpismo que as classes ricas tem adotado, nos países que integram pobreza e modernidade produtiva, sistema financeiro altamente qualificado com legiões de desinformados dos seus próprios direitos e prerrogativas. Mas as facilidades que a direita liberal e neoliberal, os conservadores tradicionais e a centro-direita midiática encontraram, para tentar perpetuar o seu poder nos regimes democráticos, que estamos vivendo, também habitam nossos próprios leitos da esquerda.
O relacionamento espúrio de uma boa parte da nossa bancada do PT com Eduardo Cunha, quando este já estava a serviço da grande mídia e da direita fascista para promover o golpe contra Dilma, a aceitação -pelo PCdoB- de coligação nas proporcionais com o partido de Bolsonaro, o PSB se trasladando para o campo da direita neoliberal apoiando Alckmim, a maioria do PSOL apoiando o golpismo de uma maneira “discreta” no Tribunal Superior Eleitoral (porque precisa disputar “com o lulismo e o PT”), são metástases desta decadência democrático-republicana. Elas ocorrem num período, não só “não revolucionário”, mas de ofensiva global do capital financeiro contra a democracia social, cujos partidos em regra já abandonaram o terreno de defesa da sua próprias conquistas do século passado. Não se trata, este processo, de “traição”, mas de um lento “amadurecimento” complacente e talvez involuntário, com as misérias e violências do sistema do capital, cada vez mais bélico, impiedoso e invasivo.
Penso que deveríamos reencetar -com outros instrumentos de análise que devem ser agregados ao marxismo- o debate social-democrata que permeou a inteligência da esquerda no início do Século passado, cuja conclusão foi a emergência de dois projetos que, se ajudaram a um melhor equilíbrio social no capitalismo, pelo “medo da revolução”, terminaram fracassando como projetos universais emancipatórios: o projeto social-democrata e o projeto bolchevique soviético.
Esta discussão, verdadeiramente, seria a busca de uma “Terceira Via”, que não está entre a socialdemocracia em crise e o neoliberalismo triunfante, como propôs Toni Blair, mas entre a social-democracia, originária de Bernstein, Kautsky e Mehring, e o socialismo “ocidental”, de Gramsci e Salvador Allende. Talvez, se tentarmos por aí, as nossas táticas de esquerda tornem-se menos supérfluas para enfrentar o medo do futuro incerto, que a violência do capitalismo vem espalhando sobre o planeta. Este medo, disseminado no “senso comum” manipulado, é o medo da democracia, no sentido integral do seu conceito. É o medo de uma desigualdade decente sem carências elementares, promessa não cumprida de todas as revoluções depois das Luzes, que permanece no horizonte como um desafio da decadência.
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