De sargenteante a capitã
Dilma Rousseff é um ser humano bom demais para lidar com os bandoleiros da política e do mercado
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Vou contar uma história que vai gerar alguma inquietação.
Em 2017 ocorreu no Instituto Lula importante reunião entre o jovem prefeito de Sumaré Luiz Dalben e o ex-presidente Lula.
Terminada a reunião o jovem prefeito, a quem eu acompanhei como secretário municipal, instigou Lula perguntar minha opinião quanto às dificuldades enfrentadas por Dilma Roussef na presidência.
Resisti um pouco, bem pouquinho, Lula insistiu e eu, “pronto, falei”.
Comecei contando ao presidente que em 1983 meu amigo Eduardo Surian e eu, passamos dez meses e treze dias a disposição do Exército brasileiro, nos vimos soldados “de um dia para o outro”, atingidos pelo artigo 143 da Constituição Federal que comanda o serviço militar obrigatório, logo nós que estávamos matriculados e cursávamos o 2º ano de Direito na PUC Campinas, éramos ativos no movimento estudantil e na militância partidária.
Eu disse a Lula que havia muitas outras histórias interessantes que vivemos naquele período, as quais poderiam ser contadas, mas ele estava curioso, portanto, falei o que aprendi sobre hierarquia, naqueles meses.
Disse a ele que, em nome da sobrevivência, aprendemos rapidamente que a hierarquia militar é a base da organização das Forças Armadas.
Aprendemos que o “chefe” de uma companhia é capitão, o meu era o Capitão Samir - um militar democrata e progressista -, imediatamente subordinados a ele estavam os tenentes, abaixo desses estavam os sargentos, depois os cabos e lá embaixo, desesperados para ir embora, nós os soldadinhos de chumbo.
Ou seja, a hierarquia é: capitão, tenente, sargentos, cabos e soldados.
Contei a ele que há uma função, exercida geralmente por um sargento, que gera stress na cadeia de comando e é, em certa medida, disruptiva, pois provoca a interrupção do seguimento normal da hierarquia, me refiro à sargenteação. A sargenteação é a função numa organização militar, onde ocorre a organização e toda a documentação da unidade militar, a guarda da documentação do pessoal, definição das escalas, realiza todos os tipos de controle (controles dos estoques, controle financeiro, saldos bancários, prestações de contas, etc.). O sargento responsável pela sargenteação é chamado de “sargenteante” e a ele cabe a administração da companhia.
Na prática, esse sargento responde apenas para o capitão, apesar de ser hierarquicamente subordinado aos tenentes e estar em pé de igualdade com os demais sargentos, contudo, o exercício dessa função dá a ele um grande poder, principalmente se ele tiver a inteligência de não levar problemas “menores” ao capitão.
O sargenteante é quem primeiro conversa com o capitão todos os dias, por isso a sua versão dos fatos tende a ser a “história oficial”, o que quase sempre desagrada os tenentes.
Há evidente assimetria no acesso ao comandante: acesso fácil e diário do sargenteante e difícil e episódico para os tenentes; ao sargenteante incumbe cobrar implacavelmente cada um dos tenentes, dos sargentos, dos cabos e dos soldados para que busquem a excelência no cumprimento das suas missões, por isso ninguém gosta do sargenteante, que chega a ser odiado, especialmente pelos tenentes.
Numa comparação entre a hierarquia militar e a dos governos, acredito que que aos tenentes do governo faltou solidariedade a Dilma, faltou, em certa medida, honestidade, comprometimento e coragem para que eles dissessem a verdade a ela, todo mundo reclamava do seu “jeitão”, mas eles não tinham coragem dizer isso a ela.
Basta que lembremos o episódio do impeachment, no qual Dilma fiou-se na avaliação de Mercadante e outros tenentes, todos “gênios da política”, que diziam à presidenta que ela teria entre 270 a 300 votos, ou seja, muito mais que os 170 necessários ao arquivamento do pedido de impedimento. Teve 167 votos, faltaram três votos.
Parabéns aos brilhantes articuladores políticos do governo Dilma.
Dilma, apesar de ser uma tenente na hierarquia do governo Lula, exercia também a função de sargenteante, o que não possibilitava a ela “fazer amigos”, ademais, ela não é dada a conversa mole, ela trabalha 10, 12, 14, 16 horas por dia.Expliquei meu ponto de vista a Lula e disse: ”em 2010, ao invés de escolher um dos seus tenentes homens para disputar a presidência, o senhor escolheu uma tenente mulher que exercia também a função de sargenteante; uma mulher extremamente inteligente, trabalhadora, honesta e leal, mas com pouca disposição para a prática política e para a conciliação”.
A meu juízo, Dilma, uma mulher corajosa que enfrentou a ditadura, sofreu na presidência pelas suas qualidades, sofreu também o preconceito do machismo da classe política, dos coronéis do centrão, dos evangélicos conservadores, de cada um dos tenentes do governo Lula (que imaginavam que seriam o escolhido por Lula).
Dilma sofreu grandemente os efeitos devastadores do machismo e não teve, porque não é um dos seus pontos fortes, habilidade política para lidar com essa realidade.
Não é o meu lugar de fala, mas é a violência do homem contra a mulher, seja física ou sexual, seja moral ou psicológica, um fator que interfere intimamente na vivência geral dela e na posição que ocupa na sociedade e no mundo.
Dilma foi a melhor tenente do governo Lula, mas faltou para a presidência a paciência, tão necessária, às interações, às vezes indigestas, que possibilitam a construção, ampliação e manutenção de alianças políticas.
Lula ouviu e sorriu de forma protocolar, mas ficou visivelmente desgostoso. Por isso me arrependi de ter dito isso a ele.
Passados alguns anos ao ler uma entrevista que Lula concedeu a Maria Inês Nassif, Juca Kfouri, Ivana Jinkins e Gilberto Maringoni, me deparei com a seguinte afirmação de Lula: “Ela [Dilma] cometeu muitos erros na política pela pouca... talvez pela pouca vontade que ela tinha de lidar com a política; muitas vezes ela não fazia aquilo que era simples fazer.”
Minha conclusão é que Dilma Rousseff é um ser humano bom demais para lidar com os bandoleiros da política e do mercado.
Essas são as reflexões.
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