De Milton Santos para o Chile de Neruda
Milton Santos faz falta neste trágico “mundo-espetáculo”. Sua crise de fluxos, ciclos curtos e solidão na frieza dos terminais – tempo superlativo das demolições em rede- me fez lembrar da sua figura humana e intelectual magnífica.
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Milton Santos, geógrafo, professor emérito da USP, vencedor do Premio Internacional de Geografia Vautrin Lud (1994), com livros e artigos publicados em diversos idiomas -teórico crítico da “globalização fundada na tirania da informação e do dinheiro”- também via nesta mutação planetária as possibilidades de um mundo novo: “A grande mutação tecnológica é dada com a emergência das técnicas de informação, as quais -ao contrário das técnicas da máquinas- são constitucionalmente divisíveis, flexíveis e dóceis, adaptáveis a todos os meios e culturas, ainda que seu uso perverso atual seja subordinado aos interesses dos grandes capitais. Mas, quando sua utilização for democratizada, estas técnicas doces estarão a serviço do homem.” (“Por uma outra globalização – do pensamento
único à consciência universal”, Record, 2000,174 pgs.)
Milton Santos faz falta neste trágico “mundo-espetáculo”. Sua crise de fluxos, ciclos curtos e solidão na frieza dos terminais – tempo superlativo das demolições em rede- me fez lembrar da sua figura humana e intelectual magnífica. Lembro que Milton era negro e logo me lembro dos escravos, Jessé Souza, Joel Rufino dos Santos, Zumbi dos Palmares e logo me aproximo do Chile de Allende e de Neruda.
Quando li nas redes, em comunicação pública instantânea e global, o pedido de perdão do Presidente Piñera -supostamente arrependido dos seus crimes econômicos- a figura de Milton Santos se desenhou na minha memória. Na sua comunicação Piñera se comprometeu a mudar o modelo econômico da ditadura de Pinochet, pois até então -alegou- não sabia o que estava fazendo, não compreendia as mortes que semeara, nem tinha se apercebido que a sua própria esposa se sentia feliz e privilegiada com desgraça alheia.
Piñera, acelerou a concentração de renda, aumentou as desigualdades, gerou insegurança e pobreza -mais além da insegurança e pobreza costumeiras- que despertaram uma luta desesperada por direitos, forte e espontaneísta, no início carente de uma direção capaz de enfrentá-lo imediatamente. Na sua etapa sanguinária e militarizada de Governo já estavam nas ruas, porém, os jovens, os esquecidos, os precários, as mulheres, os desempregados, os sem previdência e todos os pobres, para os quais o liberal-rentismo sempre reservou apenas a coluna da “culpa” ou da “despesa”, no seu cálculo assimétrico de distribuição de custos, encomendado pelos bancos.
Quando a necessidade de sobreviver bateu de frente contra as manipulações que construíram um “oásis” na ficção chilena, as pessoas deixaram de acreditar nos seus algozes. Despertou nelas, então, um “espírito animal” contra as regras vigentes, sempre necessárias para “empreender”, como dizem os capitalistas liberais sedentos por rebaixamentos salariais e subsídios. Só que agora a “capacidade empreendedora”, despertada pelas reformas chilenas, tornou-se -de repente- uma multidão de desejos de futuro, não de negócios precários para vender frutas nas esquinas ou trabalhar num Uber 15 horas por dia.
Não é de espantar que os favorecidos com estes “modelos” criem uma narrativa pacificadora da sua
consciência. Ela baseia-se no que chamam de “sacrifício necessário” (dos outros), como porta de passagem para uma bonança de todos, quando estes -os favorecidos- já estão situados no 1% da população, que controla 25% da renda total do país! Lembremo-nos, todavia, que Piñera já governara, foi reeleito -portanto- por uma população que já o conhecia e que a rebelião em curso no Chile, veio contra
um “status” deixado pela direita e pela centro-esquerda, em níveis diferentes, mas com o mesmo sentido: fé no privatismo -moderado ou não-; educação paga, previdência privada e miserável, concentração de renda como propulsão distributiva.
Lembremo-nos, também, que esta população experimentara governos progressistas democráticos -desde Salvador Allende- passando por Ricardo Lagos, chegando à Presidenta Bachelet, o que faz pensar também com espanto- numa outra questão: como o projeto ultraliberal ou liberal-rentista conseguiu impregnar-se como valor moral e político, em amplas parcelas do povo empobrecido e desempregado? Como, com a naturalidade alarmante do prestador “uberizado”, que trabalha 14 horas por dia, este mesmo povo majoritariamente elegeu Pìñera pela segunda vez?
Para tentar pensar o Brasil, onde no futuro sucederá o que ocorre no Chile, faço uma pequena reflexão sobre a nossa História. No início da vigência da Lei dos Sexagenários (1835) os fazendeiros e Senhores de Engenho -para não alimentar seus velhos escravos já improdutivos- largavam-nos nas estradas insalubres do sertão, só com a roupa do corpo. Com as costas marcadas pelo açoite, com a memória de serem tratados como coisas, com as jornadas de sol à sol -até a máxima exaustão- eles então buscavam novos caminhos depois de uma vida inteira da cativeiro.
Indago se estes novos homens “livres” imaginaram -de imediato- que estariam livres efetivamente para cuidar do seu futuro? Ou eles se davam conta que a nova liberdade seria um novo tipo de escravidão? Enfrentariam, efetivamente livres, os desertos e os vastos campos do sul -à luz das estrelas e no frio das intempéries- sem serem bloqueados pela fome?
Na escravidão, ao contrário da sociedade capitalista moderna, que é “espetáculo”(…)”onde o fim não é nada, o desenrolar é tudo”(…) o espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo” (Debord) ou seja, prosseguir na acumulação infinita. Na escravidão, todavia, o cenário do espaço público era pequeno e as barbáries -assim como os gestos heroicos de resistência- não se reproduziam como espetáculo universal e findavam com as chacinas secretas que se amorteciam na História.
Penso que aqueles sexagenário livres imaginavam, sim, um caminho de liberdade, sem a vigilância do Feitor e sem o olhar feroz dos seu proprietários, mas logo saberiam que -para viver e resistir- teriam que perder as ilusões da liberdade concedida. E assim deveriam chegar logo a um Quilombo, para iniciar um infindável ciclo de novas lutas e outras formas de resistência, que levariam várias décadas para frutificar. Na escravidão os impasses da liberdade eram imediatos, pois não existia a mediação-espetáculo do mercado mundial e da comunicação privada em oligopólios, com o seu oferecimento de saídas aparentes. Eram as exigências brutais da vida real que, como corredores de granito, levavam a um só caminho: agrupar-se na solidariedade ou morrer como indivíduo livre.
No modo vida neoliberal inauguram-se os tempos de espera, característico dos ciclos curtos de dominação, que precisam alterar seus modos de controle, para que persista a paz infinita dos 1%. Convencimento e violência -sucedem um ao outro- para ensinar às massas que todos podem ser empreendedores individuais -vendedores de amendoins ou prestadores “uberizados”- contanto que a riqueza prossiga o seu ritual de concentração.
O problema que terão que enfrentar, todavia – daqui para diante – é que este espírito empreendedor -semeado pelo capitalismo como ideologia e falácia- pode se transformar, no atual capitalismo de opereta das elites locais, num empreendimento coletivo para uma nova ordem econômica orientada por indivíduos livres do jugo ilusório do liberal-rentismo. É o que o Chile pode ensinar para nós, brasileiros,
submetidos a um Governo de sociopatas, orientados pelos ultraliberais que namoram o fascismo e não cansam de festejar a morte e a tortur
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