De frente ao júri, ela beijou seu assassino
é certo que ele não a matou, mas isso não faz dele menos assassino, porque o seu gesto homicida e tirano arrancou-lhe a vida; e viver sem vida é a pior de todas as mortes
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aconteceu no Rio Grande do Sul, acontece em diversos lugares do mundo, acontece o tempo todo.
jamais deveria acontecer.
é certo que ele não a matou, mas isso não faz dele menos assassino, porque o seu gesto homicida e tirano arrancou-lhe a vida; e viver sem vida é a pior de todas as mortes.
eram namorados e, como namorados, namoravam às tardes como os gerânios namoram os raios de sol que os aquecem; instintivamente.
eram, essa é a verdade, beijados pelos instintos quando suas bocas se tocavam a trocar salivas.
mas também, eram afagados pelos sentimentos que vão se construindo além das eternidades, movidos pela diacronia crônica das relações que são formatadas pelo uso, pelos costumes, pelo atavismo que criou o homem e a mulher e fez deles um destino.
uma artificialidade travestida de coisa natural.
o casal, enfim, sentia aquelas sensações primevas das primaveras juvenis que forma e deforma casais.
se amavam, em uma palavra.
até que, no homem, revelou-se aquilo que se revela no homem quando ele está numa relação construída por essas questiúnculas diacrônicas; dentro dele existe um macho, um macho branco, um ser inatural, um animal social erguido dos escombros psicológicos de uma raça amedrontada que provoca pavor e medo em outras raças, fazendo de sua fraqueza uma grande força.
ganharam o mundo, esses machos brancos, matando e escravizando homens, subjugando a natureza, objetificando animais e estuprando mulheres.
e chamam isso, desavergonhadamente, de descoberta... ou conquista.
uma dessas façanhas foi um satélite longínquo. chegaram sem ser convidados, enfiaram uma estaca fálica no terreno infértil e anunciaram a conquista.
como se vê, são uns cavalheiros.
nas relações, ditas afetivas, essa fraqueza se revela pelo temor do outro, o macho que fareja a sombra de outro macho a roer-lhe a alma, como as traças roem orelhas de livros.
e pelo temor da outra, de sua subjetividade, suas vontades, sua liberdade; sua humanidade, para ser mais claro.
o temor da alteridade é a grande paúra dessa rapaziada.
em algum momento de um relacionamento a dois, certos machos percebem nos olhos de uma mulher o vislumbre de algum sonho, enxerga nos olhos dela o brilho imaginado de alguém que deseja e que traz no corpo o pecado de ser desejada.
esse é o ponto.
então, numa tarde cheia de luz, com aves namorando sob a copa das árvores, na pacata cidade de Venâncio Aires, no centro do Rio Grande do Sul, o homem sacou uma pistola e disparou sete projéteis contra sua amada, cuspidos do cano frio e fálico; cinco deles invadiram o corpo da mulher, quentes, rasgantes, homicidas.
o corpo, dela, tombou no chão, o mesmo chão que um dia há de engoli-lo.
mas ainda não foi dessa vez.
o cabra retirou-se em fuga.
ela sobreviveu.
sobrevieram os julgamentos. primeiro os do povo, juízes cruéis e impiedosos: “alguma coisa ela fez para tê-lo levado a tão infame ato”, arrotavam uns; “o homem suporta muita coisa, mas não suporta tudo”, grasnavam outros.
meio ano depois, um corvo togado enviou o covarde valente a juri popular.
ou seja, os mesmos julgadores de primeira hora, agora, são chamados para a sentença final, como se, embrulhados pela sombra sombria e assombrosa de uma corte, aqueles anônimos fossem iluminados por um método, por uma fria e calculada isenção, como se, na corte, fossem capazes de fazer um outro recorte.
ali, a mulher, objeto do julgamento social, encontraria o homem abjeto que tentou matá-la.
e então, o teatro veio abaixo.
ela, frente a frente a seu agressor, o perdoa e, mais que isso, num gesto trágico e fatal, envolve-o em seus braços e o beija com ternura; um ósculo silencioso e eloquente.
culpou-se pelos desvarios do outro.
acontece sempre, acontece em todo lugar; não deveria acontecer nunca.
há as que julgam o feminicídio, ou a sua tentativa, como um gesto extremo de desespero, uma demonstração desviante de amor: um amor não correspondido, um amor ferido, um amor abandonado...
sabemos que o feminicídio nunca é sobre amor, é sobre posse e poder.
assim como o estupro, como nos ensinou a antropóloga Rita Segato, nada tem a ver com sexo, porque não é um ato erótico, é uma demonstração de força e poder.
e o poder, você bem o sabe, é o viagra dos energúmenos.
jamais saberei o que se passa na cabeça daquela mulher, é preciso ser um escafandrista para mergulhar tão fundo; mas imagino o que se passa na cabeça daquele homem.
sou um homem, conheço os nossos códigos, sei como somos treinados para sermos o que somos.
somos um ser que mata.
e que queremos, por tudo nesse mundo, ter a posse, ser o dono, botar o pau na mesa e dizer quem manda.
por isso, o homem manda e desmanda, mata e desmata.
o homem, o belicoso, é um animal perigoso.
palavra da salvação.
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