De 1964 para cá, muito a esclarecer. O Brasil ainda veste luto

"Ao recomendar a comemoração, ou 'rememoração', do golpe militar de 1º de abril e a revisão histórica do que chama, extemporaneamente, de a 'revolução de 31 de Março', Bolsonaro não coloca somente o País em confronto político. Ele põe o Brasil em perigo e a nossa democracia em risco. Atiça os que sonham com o passado, com a tortura, com as prisões políticas, com a guerra entre um lado e outro", avalia o jornalista Gilvandro Filho, do Jornalistas pela Democracia; "O que aconteceu no Brasil não deve acontecer mais. Até porque muitas barbaridades e muitos crimes não foram esclarecidos. Nesse assunto, a memória brasileira ainda veste luto"

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Por Gilvandro Filho, do Jornalistas pela Democracia - Em agosto de 2014, um velho torturador resolveu falar. E a sua revelação foi mais que impactante. O que ele "abriu" foi mais que uma confissão de culpa, foi a ratificação do tipo de crime que era cometido ao longo da ditadura militar que durou 21 anos e fez do Brasil um país com uma chaga enorme e até agora não curada. Os militares que estavam no poder e que levavam às últimas consequências aquela guerra ideológica insana e sangrenta não eram apenas genocidas assassinos. Eles cometeram crime contra a humanidade.

Pelo depoimento do velho torturador, o policial Cláudio Guerra, dava-se uma baixa de 12 nomes na lista dos presos políticos desaparecidos durante o regime militar. Ex-delegado de Polícia Civil do Espírito Santo, Guerra falava com autoridade. Ele também era ex-agentes do Serviço Nacional de Informações, o famigerado SNI, e foi autor de um dos atos mais bárbaros da ditadura: 12 corpos de presos políticos executados nos porões da repressão foram atirados nas fornalhas da Usina de Açúcar Cambaíba, em Campos, no Norte Fluminense.

O pernambucano Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira era um desses presos cujos corpos acabaram carbonizados. Ele e o conterrâneo Eduardo Collier Filho. Os dois foram presos no sábado de carnaval de 1973, numa esquina de Copacabana, no Rio de Janeiro, local onde se encontraram para "cobrir um ponto" marcado pela Ação Popular Marxista-Leninista, a APML, da qual faziam parte.

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A revelação feita pelo ex-torturador Guerra era a primeira notícia que as famílias teriam dos dois jovens estudantes, desde o sumiço deles. Foram 41 anos de silêncio absoluto, de negativas de informações, de drama para as famílias.

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A saga da família Santa Cruz virou livro – "Onde Está Meu Filho?" (Chico de Assis, Cristina Tavares, Gilvandro Filho, Glória Brandão, Jodeval Duarte e Nagib Jorge Neto, Ed. Cepe) – hoje em sua segunda edição. Mais que um apelo, o título é uma denúncia contundente feita pela mãe de Fernando, Elzita, que os amigos chamam carinhosamente de Dona Zita. Uma guerreira na maior dimensão que o termo pode ter. Uma heroína brasileira.

Dona Zita nunca se intimidou, mesmo diante de toda a sorte de ameaça e de desrespeito. Bateu às portas dos quarteis, foi atrás de autoridades em Brasília, cobrou informações nas delegacias, abriu a boca na imprensa. Contou com a ajuda de muitas personalidades da política, da Igreja Católica, da intelectualidade, do meio jurídico. Marcharam com ela nessa luta por notícias do paradeiro de Fernando nomes como Ulysses Guimarães, Marcos Freire, Paulo Brossard, Fernando Lyra, Jarbas Vasconcelos, Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Sobral Pinto, JG de Araújo Jorge. Até mesmo uma figura do regime militar, o Marechal Juarez Távora, tentou intervir e obter informação, sem sucesso.

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A incineração dos corpos na Usina Cambaíba trouxe à baila, finalmente, uma notícia na qual as famílias desses 12 presos políticos – até então desaparecidos políticos – puderam, pelo menos, se apoiar para dizerem "meu filho morreu". Enterrar os corpos, pelas circunstâncias brutais do ato, impossível continuou a ser.

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O relato do policial Cláudio Guerra deu uma dimensão do que os torturadores e genocidas eram capazes de fazer, naqueles tempos sombrios e sacramentados como os "anos de chumbo". "Os corpos chegavam em sacos plásticos pretos amarrados com cordas. Ninguém desconfiava que estávamos queimando pessoas. O movimento era disfarçado porque sempre haviam funcionários alimentando os fornos com lenha. O odor forte do vinhoto mascarava o cheiro", disse à imprensa, na época, o ex-delegado.

Cláudio Guerra, na mesma entrevista, defendeu a autocrítica das Forças Armadas: "O que aconteceu é que erramos e agora temos que confessar e pedir perdão à nação. Hoje, a ideia é outra, as forças armadas são outras, há uma nova mentalidade, mas no passado houve o erro. Temos que confessar esses erros e tentar mudar. A minha confissão de participação é para tentar ajudar a esclarecer o que realmente aconteceu. Esta é uma história que precisa ser passada a limpo. Por isso a minha confissão. Os outros envolvidos não se expõem por temor a cadeia. Outras pessoas também podem ajudar a contar essa história".

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Mesmo na Comissão da Verdade, poucos seguiram a sugestão de Claudio Guerra e quase ninguém fez mea-culpa. A começar pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo do presidente Jair Bolsonaro e o único condenado por tortura praticada durante a ditadura. Muitos menos apareceram mais torturadores confessos para jogar alguma luz sobre a história de outros desaparecidos.

Com a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro, a autocrítica dos torturadores ficou na poeira da estrada. O anti-comunismo e o discurso do ódio passaram constituir tema dos novos mantras. O próprio candidato ameaçou metralhar os adversários políticos – literalmente, os "petralhas" -, o que animou os seus seguidores a espalhar o terror nas ruas ao longo da campanha.

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Eleito, a primeira ação de Bolsonaro foi reacender a briga contra o desarmamento, o que fez baixando um decreto de flexibilização da compra e venda de armas. Montou um governo militar, com um time de generais que, em número, não encontra paralelo nem na própria ditadura. Estimulou – pessoalmente e através dos três filhos que deitam e rolam no governo – o recrudescimento do anticomunismo atrás de ministros indicados por figuras como o "filósofo" de extrema-direita e astromante Olavo de Carvalho. Pôs o Brasil em guerra ideológica.

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Ao recomendar a comemoração, ou "rememoração", do golpe militar de 1º de abril e a revisão histórica do que chama, extemporaneamente, de a "revolução de 31 de Março", Bolsonaro não coloca somente o País em confronto político. Ele põe o Brasil em perigo e a nossa democracia em risco. Atiça os que sonham com o passado, com a tortura, com as prisões políticas, com a guerra entre um lado e outro.

Bolsonaro, mais que isso, desrespeita a luta de centenas de pais, mães, filhos, irmãos, parentes e amigos de desaparecidos políticos. Como de famílias como a de Dona Zita Santa Cruz.

O que aconteceu no Brasil não deve acontecer mais. Até porque muitas barbaridades e muitos crimes não foram esclarecidos. Nesse assunto, a memória brasileira ainda veste luto.

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