Dançando a valsa com os mercadores da morte, rumo ao Armageddon

Ainda falta muito para a Rússia chegar perto do total de mortes civis causadas por bombas múltiplas fornecidas pelas forças militares dos EUA

(Foto: “Raft of Doom” / Illustration by Mr. Fish)


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 Por Chris Hedges

 (originalmente publicado no website ScheerPost, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247)

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A Guerra Fria, de 1945 a 1989, foi um bacanal selvagem para os fabricantes de armamentos, para o Pentágono, a CIA, os diplomatas que jogavam um país contra um outro no tabuleiro mundial de xadrez, e para as corporações capazes de saquear e pilhar ao igualarem o capitalismo predatório com a liberdade. Em nome da segurança nacional (dos EUA), os Guerreiros da Guerra Fria – muitos dos quais se auto-identificavam como liberais – demonizaram os trabalhadores, as mídias independentes, as organizações de direitos humanos e aqueles que se opunham à economia de guerra permanente e à militarização da sociedade estadunidense como sendo moles com o comunismo.

Foi por isso que eles ressuscitaram a Guerra Fria.

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A decisão de repelir a possibilidade de uma coexistência pacífica com a Rússia ao final da Guerra Fria é um dos crimes mais egrégios do final do século XX. O perigo de provocar a Rússia foi universalmente entendido com o colapso da União Soviética – incluindo, dentre as elites políticas (nos EUA), pessoas tão diversas como Henry Kissinger e George F. Kennan, que chamavam a expansão da OTAN na Europa Central de “o mais fatídico erro da política estadunidense na era pós-Guerra Fria inteira.”

Esta provocação - uma violação da promessa de não expandir a OTAN para além das fronteiras da Alemanha unificada - viu a indução da Polônia, da Hungria, da República Tcheca, da Bulgária, da Estônia, da Látvia, da Lituânia, da Romênia, da Eslováquia, da Eslovênia, da Albânia, da Croácia, de Montenegro e da Macedônia do Norte na aliança militar ocidental. Esta traição foi piorada por uma decisão de alocar tropas da OTAN na Europa Oriental, incluindo milhares de tropas estadunidenses – uma outra violação de um acordo feito por Washington com Moscou. A invasão russa na Ucrânia – talvez uma meta cínica da aliança ocidental, agora solidificou uma OTAN em expansão e ressurgente em um militarismo exagerado e incontrolável. Os mestres da guerra podem estar em êxtase, porém as consequências potenciais, incluindo uma conflagração mundial, são terrificantes.

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A paz foi sacrificada em troca pela hegemonia global dos EUA. Esta foi sacrificada em troca dos bilhões em lucros auferidos pela indústria de armamentos. A paz poderia ver os recursos do estado investidos em pessoas, ao invés de sistemas de controle. Ela poderia nos permitir enfrentar a emergência climática. Porém nós berramos paz, paz, e não há paz. As nações se rearmam freneticamente, ameaçando fazer uma guerra nuclear. Elas preparam-se para o pior, garantindo que o pior ocorrerá. 

E daí, se a Amazônia está chegando ao seu ponto de inflexão, no qual as árvores logo começarão a morrer em massa? E daí, se o gelo terrestre e as plataformas de gelo estão se derretendo de baixo para cima numa velocidade maior do que foi previsto? E daí, se as temperaturas dispararem, se a terra for devastada por furacões, inundações, secas e incêndios selvagens? Face à maior crise existencial que assedia a espécie humana – e a maioria das outras espécies – as elites dominantes alimentam um conflito que está fazendo subir o preço do petróleo e turbinando a indústria de extração de combustíveis fósseis. Esta é a loucura coletiva. 

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A marcha em direção ao confronto prolongado com a Rússia e a China será um tiro pela culatra. O esforço desesperado de contrapor-se à contínua perda de domínio econômico pelos EUA não será compensado pelo domínio militar. Se a Rússia e a China podem criar um sistema financeiro global alternativo, um sistema que não use o dólar dos EUA como a reserva de moeda do mundo, isto sinalizará o colapso do império estadunidense. O dólar despencará em valor. Os bônus do Tesouro dos EUA, usados para financiar a massiva dívida estadunidense, se tornarão praticamente sem valor algum.

Washington planeja transformar a Ucrânia na Chechênia ou no antigo Afeganistão, quando o governo Carter – sob a influência manipuladora e malévola (estilo Svengali - https://pt.wikipedia.org/wiki/Svengali) do Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski – equiparam e armaram os jihadistas radicais que se transformariam nos Talibãs e no Al Qaeda na luta contra os soviéticos. Isto não será bom para a Rússia. Isto não será bom para os Estados Unidos. Não será bom para a Ucrânia, à medida que fazer a Rússia sangrar exigirá rios de sangue ucraniano. A decisão de destruir a economia russa, de tornar a guerra ucraniana num atoleiro para a Rússia e de derrubar o regime de Vladimir Putin abrirá uma caixa de Pandora de males. A engenharia social massiva – vejam o Afeganistão, o Iraque, a Síria, a Lívia ou o Vietnam – tem a sua própria força centrífuga. Isto destrói aqueles que fazem o papel de Deus.

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A guerra ucraniana silenciou os últimos vestígios da Esquerda. Quase todos engajaram-se irrefletidamente na grande cruzada contra a mais nova encarnação do mal, Vladimir Putin - o qual, como todos os nossos inimigos, tornou-se o novo Hitler. Os Estados Unidos darão US$ 13,6 bilhões de assistência militar e humanitária à Ucrânia, sendo que o governo Biden autorizou no sábado um adicional de US$ 200 milhões em assistência militar. A força de 5 mil homens da força de destacamento rápido da União Europeia, o recrutamento de toda a Europa Oriental, inclusive da Ucrânia, à OTAN, a reconfiguração dos antigos exércitos do bloco soviético às armas e tecnologia da OTAN foram todas efetuadas rapidamente. Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha está se rearmando massivamente. Eles suspenderam a sua proibição de exportar armas. O seu novo orçamento militar é o dobro da quantia do antigo orçamento, com promessas de aumentar o orçamento para mais de 2% do PIB – o que alçaria as suas forças militares do sétimo ao terceiro lugar dentre as maiores do mundo – atrás da China e dos EUA. Os grupos de batalha da OTAN estão sendo duplicados em tamanho nos estados bálticos, alcançando os 6 mil soldados. Os grupos de batalha serão enviados à Romênia e à Eslováquia. Washington duplicará o número de seus soldados estacionados na Polônia para 9 mil. A Suécia e a Finlândia estão considerando cancelar o seu status neutro para integrar a OTAN.

Esta é uma receita para a guerra global. A História, bem como todos os conflitos que eu cobri como correspondente de guerra, demonstraram que, quando começa uma postulação militar, frequentemente é necessário pouco para acender uma pira funerária. Basta um erro. Um engano. Uma aposta militar à mais. Uma provocação à mais. Um ato de desespero.

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A ameaça russa de atacar os comboios de armas para a Ucrânia enviados pelo Ocidente; o seu ataque à uma base militar no oeste da Ucrânia, a 12 milhas (uns 20 km) da fronteira polonesa, a qual é uma área de treinamento para forças mercenárias estrangeiras; uma declaração do presidente polonês Andrzej Duda de que o uso de armas de destruição de massa – como as armas químicas – pela Rússia contra a Ucrânia seria uma jogada que mudaria o jogo e forçaria a OTAN a repensar a sua decisão de evitar uma intervenção militar direta – todos estes são desenvolvimentos sinistros que empurrarão a aliança a chegar mais perto de uma guerra aberta com a Rússia. 

Uma vez que as forças militares são empregadas, mesmo se supostamente com uma postura defensiva, a armadilha contra ursos está armada. Não é preciso muito para detonar o gatilho. A vasta burocracia militar, vinculada à alianças e compromissos internacionais, junto com planos e cronogramas detalhados – uma vez que comece a mover-se para a frente, se torna imparável. Esta é propulsionada não pela lógica, mas por ação e reação, como a Europa aprendeu em duas guerras mundiais.

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A hipocrisia moral dos EUA é assombrosa. Os crimes que a Rússia está cometendo na Ucrânia são mais do que equivalentes aos crimes cometidos por Washington no Oriente Médio nas duas últimas décadas – incluindo a ação de guerra preventiva, a qual é uma ação criminosa de agressão, segundo as leis pós-Nuremberg. Esta hipocrisia é muito raramente exposta – como quando a embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, disse a esta instituição: “Vimos vídeos de forças russas levando armas excepcionalmente letais à Ucrânia, as quais não têm lugar no campo de batalha. Estas incluem munições de cluster (que espalham múltiplas bombas) e bombas de vácuo que são banidas sob a Convenção de Genebra.” Algumas horas depois, a transcrição oficial das declarações dela foi emendada, adicionando as seguintes palavras: “se estas são dirigidas contra civis”. Isto se dá porque – assim como a Rússia – os EUA jamais ratificaram a Convenção do tratado de Bombas Múltiplas (cluster bombs) e usam estas últimas regularmente. Eles as usaram no Vietname, no Laos, no Cambodia e no Iraque. Eles as proveram à Arábia Saudita para uso no Iêmen. Ainda falta muito para a Rússia chegar perto do total de mortes civis causadas por bombas múltiplas fornecidas pelas forças militares dos EUA.

Assim como os zumbis, os Dr. Strangelove que surgem das valas comuns que eles criaram no mundo todo, alimentam mais uma vez novas campanhas de matanças industriais de massa. Sem diplomacia. Sem tentativa alguma de tratar das queixas dos nossos adversários. Sem controle do militarismo desenfreado. Sem capacidade de ver o mundo sob uma outra perspectiva. Sem capacidade de compreender a realidade fora dos confins da rubrica binária do bem e do mal. Sem compreensão dos desastres que eles orquestraram por décadas. Sem capacidade de sentir pena ou de remorso.

Elliot Abrams trabalhou no governo Reagan quando eu estava reportando da América Central. Ele cobriu as atrocidades e massacres cometidos pelos regimes militares de El Salvador, Guatemala, Honduras e pelas forças Contra apoiadas pelos EUA que combatiam os sandinistas na Nicarágua. Ele atacou cruelmente os repórteres e grupos de direitos humanos como sendo comunistas ou quintas-colunas, nos chamando de “não-americanos” e “despatriotas”. Ele foi condenado por mentir ao Congresso dos EUA sobre o seu papel no caso Irã-Contras. Durante o governo de George W. Bush, ele fez lobby pela invasão do Iraque e tentou orquestrar um golpe dos EUA na Venezuela para derrubar Hugo Chávez.

“Não haverá um substituto para a força militar, e nós não temos o suficiente desta”, escreve Abrams para o Conselho de Relações Estrangeiras (Council on Foreign Relations), no qual ele é um integrante sênior: “Agora deve estar claro como cristal que será necessário gastar-se uma porcentagem maior do PIB em defesa. Precisaremos de mais forças convencionais em navios e aviões. Precisamos equiparar-nos aos chineses em tecnologias militares avançadas; porém, do outro lado do espectro, poderemos precisar de mais tanques se tivermos que alocar milhares de tropas na Europa, como fizemos durante a Guerra Fria. (O número total de tanques estadunidenses estacionados permanentemente na Europa atualmente é zero.) Os esforços persistentes de diminuir ainda mais o tamanho do nosso arsenal nuclear ou de evitar a sua modernização sempre foram más ideias; porém agora, à medida que a China e a Rússia modernizam as suas armas nucleares e parecem não estar interessados em negociar novos limites, estas limitações devem ser completamente abandonadas. O nosso (dos EUA) arsenal nuclear precisará ser modernizado e expandido, de modo que jamais tenhamos que enfrentar o tipo de ameaças que Putin está fazendo agora desde uma posição real de inferioridade nuclear.”

Putin jogou nas mãos da indústria da guerra. Ele deu aos belicistas o que estes queriam. Ele realizou as mais selvagens fantasias destes. Agora não haverá impedimentos para a marcha rumo ao Armageddon. Os orçamentos militares vão disparar. O petróleo jorrará do solo. A crise climática se acelerará. China e Rússia formarão o novo eixo do mal. Os pobres serão abandonados. As estradas de todo o mundo ficarão entupidas de refugiados desesperados. Todas dissidências serão consideradas como traição. Os jovens serão sacrificados pelas cansadas narrativas de glória, honra e país. Os vulneráveis sofrerão e morrerão. Os únicos patriotas verdadeiros serão generais, os aproveitadores da guerra, os oportunistas, os cortesãos da mídia e os demagogos zurrando por mais e mais sangue. Os mercadores da morte dominarão como deuses do Olimpo. E nós, acovardados pelo medo, intoxicados pela guerra, varridos pela histeria coletiva, clamaremos pela nossa própria aniquilação.

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