Da Vida ao Tempo



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Vida. Olhos que se abrem lentamente para a claridade do dia, e aos poucos os outros músculos respondem, cansados. O despertador toca novamente. Ela levanta da cama lentamente, apesar de saber que já deveria estar em pé. O barulho da cidade invade sua pequena casa, com carros, pés e vozes que passam.

Não é fácil acordar cansada, mas sabe que não tem opção. Ela vai para a cozinha, em busca de pão e café passado que seu filho fez na noite anterior. Como vigia noturno, quando ela chegar ao trabalho, ele estará saindo, mas ao menos conseguem se dar um abraço, pois os dois trabalham no mesmo local, ele como vigia e ela como faxineira. Seu peito dói um pouco, porém ela repete para si mesma: não tenho opção, não posso faltar ao trabalho. 

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Toma um banho rápido, pega sua bolsa, já pronta na noite anterior, verifica se tem dinheiro para o ônibus, e sai ainda ao raiar do dia. Respira, aliviada, a poluição da cidade. Mais um dia de vida, mais um dia para agradecer. Ela faz uma prece mentalmente, enquanto anda até o ponto, e pensa sobre o culto de domingo, ansiosa. 

O ponto de ônibus não é próximo, e no caminho até lá encontra com colegas, com as quais conversa sobre o trabalho, filhos, novela, e o culto no domingo. Um momento de silêncio enquanto chegam ao ponto de ônibus e refletem sobre o trabalho que não gostam, mas do qual não sobrevivem sem.  

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Ônibus.  O ponto dela não é o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro, o que significa que, ao pegar o ônibus, ele já está cheio e ela precisa ficar em pé. O ônibus provavelmente irá atrasar, e de qualquer forma essa espera é muito estressante.

No ponto de ônibus há algumas outras faces comuns, que trabalham no mesmo condomínio que ela, porém em diferentes funções. As colegas com as quais conversara no caminho continuam com ela na fila, mas logo passa a tristeza da reflexão e se põe a conversar novamente. 

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A fila para o ônibus cresceu bastante, ela não está nem no começo e nem no final. Como esperado, o ônibus atrasa, mas nunca é possível saber de quanto tempo será esse atraso. Hoje o atraso é excepcionalmente longo, não foi à toa que as pessoas começaram a reclamar. 

A perna dela dói e seus pés formigam. A patroa foi clara que ela precisa chegar antes das sete da manhã se quiser receber. Ela precisa do dinheiro e não pode atrasar. Começa a imaginar a bronca da patroa, como se ela fosse irresponsável e preferisse dormir a chegar na hora no trabalho. Começa a ficar sem ar de ansiedade. 

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O ônibus finalmente chega, e ela espera sua vez para entrar. Não há lugar para sentar, como esperado, e as pessoas se amontoam pelo corredor do moderno navio negreiro. Ela tenta encontrar um local para se segurar. Mãos e mais mãos se aglomeram enquanto o ônibus parte. 

O dia já está esquentando, as janelas são pequenas, muitas fechadas. Ela tenta olhar o relógio. Ela vai atrasar. Olha para as pessoas sentadas próximas a si. A maioria está conectada aos seus celulares. Alguns dormem, exaustos. Alguns conversam. Um começo de dia normal. 

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Suas pernas ainda doem, a falta de ar persiste e sua cabeça também começou a doer.  Acredita que seja ansiedade. Começa a pensar nos motivos para se sentir com sorte: pelo menos só precisa pegar um ônibus para chegar ao trabalho. A maioria precisa pegar pelo menos mais um, e não é barato. Seu filho, a alegria de sua vida…Criar o menino sozinha não foi fácil, ele desenvolveu um senso de independência mais cedo do que deveria. Lembrou de todas as vezes em que pegaram ônibus juntos, nas férias em que ele ficava quietinho no quartinho enquanto limpava a casa de uma de suas patroas. 

O Tempo. Ela começou a identificar as árvores e outras casas, seu ponto de descida se aproximava. Respirou fundo e pensou no que viria a seguir. O ônibus parou bruscamente. Umas cinco pessoas desceram, e ela foi abrindo caminho entre todos os corpos para descer.

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Primeiro degrau, segundo degrau, terceiro degrau. Ela caiu. Suas colegas viraram para ajudá-la. Ela estava tão próxima do trabalho…Olhou para a portaria do condomínio. Pensou no seu filho, mas não conseguiu falar nada. O mundo aos poucos se tornava borrado, mas uma de suas colegas entendeu o que ela queria e foi chamar seu filho. Saiu correndo para a portaria para alguém chamá-lo, e enquanto isso outras pessoas chamavam o SAMU. 

Milhares de imagens rápidas passavam pela sua mente e se misturavam. Seu peito doía. Aos poucos, ela perdia a noção do tempo. Ao longe, ouvia a voz de seu filho e sentia seu toque. Ao toque, a ausência, e a ausência, o tempo perdido, e ao tempo perdido, torna-se memória. 

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