Da frente popular à frente ampla: origem de um debate

Jornalista Breno Altman reflete sobre as coalizões contra o fascismo formadas na história. "Deveria incluir apenas as representações políticas da classe trabalhadora, do campesinato e das massas pequeno-burguesas? Ou poderia absorver também partidos capitalistas? Frente popular ou frente ampla?", questiona

(Foto: Arquivo)


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O debate sobre formação de alianças é tão antigo quanto a luta de classes. Um dos temas mais interessantes, no século XX, diz respeito ao esquema de coalizões contra o fascismo. Deveria incluir apenas as representações políticas da classe trabalhadora, do campesinato e das massas pequeno-burguesas? Ou poderia absorver também partidos capitalistas? Frente popular ou frente ampla?

Muitos são os estudiosos que destacam, na trajetória dessa discussão, as resoluções do VII Congresso da III Internacional, realizado entre julho e agosto de 1935, em Moscou. Nesse encontro seria aprovada a linha das frentes populares, fixada em informe apresentado pelo secretário-geral da organização, o búlgaro Georgi Dimitrov. Intitulado “A unidade operária contra o fascismo”, esse documento orientaria um giro decisivo na política dos partidos filiados àquela organização mundial.

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O objetivo central da proposição de Dimitrov era a confluência das duas correntes principais do movimento proletário, comunistas e socialdemocratas, em uma aliança programática contra a ascensão das correntes fascistas. Essa orientação deveria se refletir tanto em termos partidários e eleitorais, com a formação de frentes orgânicas, quanto na arena sindical e popular, reconstruindo entidades únicas de representação da classe trabalhadora.

Desde o XIII Pleno do Comitê Executivo, realizado um ano antes, a Internacional caminhava para revisar a política do VI Congresso, de 1928, que antecipava novo ciclo de crise do capitalismo e impulsionava uma dinâmica de ofensiva revolucionária. O fenômeno do fascismo era subestimado, apesar da chegada de Benito Mussolini ao governo italiano, em favor de uma política de “classe contra classe”, na qual a derrota da socialdemocracia jogava papel fundamental.

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A previsão de um período ascensional do movimento operário, conhecido também como “terceiro período”, implicava em isolar e abater os reformistas, especialmente na Alemanha, onde os socialdemocratas estavam aliados à burguesia na chamada República de Weimar e serviam como freio à luta da classe trabalhadora. O nazismo era analisado como processo colateral, parido nas entranhas da colaboração de classes, fadado a uma função subalterna, ao fracasso ou ao êxito apenas provisório, como expressão de eventual decomposição da capacidade hegemônica dos capitalistas alemães.

Convencidos dessa abordagem, os comunistas não tardariam a qualificar seus rivais como “socialfascistas”, concluindo a ruptura, de alto a baixo, entre os dois grandes destacamentos do proletariado da Alemanha. O conflito era antigo, aprofundado desde que o governo socialdemocrata, após a primeira guerra e o colapso do império prussiano, havia liderado a contrarrevolução e perseguido os comunistas, incluindo o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht em 1919.

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A reação comunista, de toda forma, emanava mais dos fatos concretos do que das deliberações da IC. Nas eleições presidenciais de 1932, os socialdemocratas decidiram integrar a chamada Coalizão de Weimar, que tinha como candidato o general Paul Von Hindenburg, eleito em segundo turno contra Adolf Hitler e o candidato comunista, Ernst Thälmann, secretário-geral do KPD. O velho militar, em 1933, acabaria por indicar o líder nazista para comandar o governo, abrindo caminho para a ditadura que logo se instalaria.

A divisão no movimento operário facilitou, sob muitos aspectos, a emergência do hitlerismo como força dirigente. Embora representassem, juntos, no início dos anos 30, algo em torno de 35% do eleitorado alemão, além de chefiarem poderosas organizações sindicais, populares e culturais, comunistas e socialdemocratas, divididos, foram incapazes de estabelecer resistência eficaz ao nazismo.

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A derrota na Alemanha, assim, foi decisiva para a retificação da linha do VI Congresso. O relatório de Dimitrov, sem poupar críticas à socialdemocracia, conduzia os partidos comunistas à superação dos paradigmas de 1928. Considerando o fascismo como a questão central daquela etapa, caracterizando-o como “a ditadura terrorista descarada dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro”, conclamava à unidade entre revolucionários e reformistas contra esse inimigo comum.

O núcleo principal de sua concepção residia exatamente no que chamou de “frente única proletária antifascista”, incentivando os comunistas a criarem condições para que os socialdemocratas, ou parte desses, abandonassem sua aliança com os partidos burgueses, capitulados frente ao fascismo, e se deslocassem para um pacto de unidade da classe trabalhadora contra essa corrente política e os interesses de classe que representava.

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Dimitrov defendia “a criação de uma extensa frente popular antifascista, sobre a base da frente única proletária.” Ele a concebia como “a aliança de luta do proletariado com os camponeses trabalhadores e com as massas mais importantes da pequena burguesia urbana, que formam a maioria da população, mesmo nos países industrialmente desenvolvidos”. Não há qualquer passagem em seu informe na qual ele defenda a extensão dessa aliança a partidos do grande capital ou dissocie a batalha contra o fascismo do combate ao sistema econômico e às classes que representa. Muito ao contrário: reitera seguidamente que a frente popular somente seria viável caso “todas as suas forças se desliguem sem demora dos partidos capitalistas”.

Para Dimitrov e a Internacional, a frente popular correspondia à criação de coalizões antifascistas com base em programas democráticos e de reformas estruturais que transferissem renda e riqueza, do capital monopolista, para as classes trabalhadoras. A luta contra o fascismo, portanto, não era considerada uma suspensão da estratégia revolucionária, de caráter socialista, nos países capitalistas, mas como processo de consolidação da unidade entre correntes operárias e da hegemonia do proletariado sobre a maioria das massas despossuídas, camponesas e pequeno-burguesas.

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As experiências concretas, como na França e na Espanha durante os anos 30, seguiram esse diapasão: frentes lideradas por socialistas e comunistas, com adesão eventual de partidos da pequena burguesia. Também foi a estratégia seguida nos países que caíam sob domínio nazista e nos Estados da periferia, como é o próprio caso brasileiro, com a formação, em 1935, da Aliança Nacional Libertadora.

A eclosão da Segunda Guerra Mundial, contudo, levaria a novos cenários geopolíticos, com fortes consequências internas. O esforço comum da União Soviética e de governos capitalistas contra o nazi-fascismo, que seria uma das razões para a própria dissolução da Internacional Comunista, em 1943, também provocaria alteração de referências em vários partidos comunistas.

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Algumas correntes, como a chefiada por Earl Browder, secretário-geral do PC dos Estados Unidos, chegaria até mesmo à conclusão de que a luta pelo socialismo e a existência dos comunistas tinham perdido sentido histórico, em favor de um amplo bloco democrático que paulatinamente poderia superar as contradições do capitalismo.

A mudança mais importante, ao menos a longo prazo, porém, talvez tenha sido dirigida por Palmiro Togliatti, substituto de Antonio Gramsci no comando do PC italiano. Prestigiado dirigente da IC, com vasta experiência internacional e na luta antifascista, retorna a seu país em março de 1944, depois de longo exílio na União Soviética. Dirige-se para Salerno, na Campânia, capital provisória da Itália desde 11 de fevereiro até 5 de junho, quando Roma seria libertada. Mussolini tinha sido deposto em 25 de julho do ano anterior e o general Pietro Badoglio assumira o comando do governo.

Tropas estadunidenses e britânicas haviam desembarcado na Sicília em setembro de 1943, ocupando o sul do país e marchando para o norte. O ditador fascista, por sua vez, fugira para a Itália setentrional, onde formara a República Social Italiana, ou Republica de Salò, que seria dissolvida apenas em 29 de abril de 1945.

O Partido Comunista e outras organizações insurgentes desencadearam, então, no território ainda controlado por Mussolini, formidável movimento de luta guerrilheira, associado à mobilização operária e popular nos grandes centros industriais italianos. Quando Togliatti regressa, o país estava praticamente recortado ao meio: o centro-sul era paulatinamente ocupado pelos Estados Unidos e a Inglaterra, o norte sediava conflito entre fascistas e partisans.

O líder comunista poderia ter retornado pela região onde seu partido comandava a luta pela libertação, assumindo diretamente a liderança dessa ofensiva, mas preferiu aportar em Nápoles, deslocando-se em seguida para a cidade-sede do governo. Ali faria um célebre pronunciamento, conhecido como o giro de Salerno, mudando completamente a linha do PCI e a estratégia desenhada pelo VII Congresso da Internacional Comunista. Passava a aceitar que a monarquia fosse mantida até a realização de uma Assembleia Constituinte, anunciava o apoio de seu partido ao governo Badoglio, declarava-se disposto a integrar uma frente com os partidos burgueses para dirigir o Estado e renunciava à perspectiva de transformar a rebelião contra o fascismo em revolução proletária.

As razões mais destacadas dessa virada seriam o temor de uma intervenção dos Estados Unidos e do Reino Unido, se os comunistas tentassem a tomada do poder, e o risco de uma guerra civil entre o norte e o sul, que pudesse recriar o ambiente para que um bloco neofascista sustentado pelos exércitos ocidentais.

A orientação anunciada por Togliatti, segundo testemunhos históricos, fora combinada com Stálin, preocupado em manter aliança com norte-americanos e britânicos até a derrota final do nazismo. O Partido Comunista da Iugoslávia, com apoio da direção soviética, criticaria fortemente a conduta de seus pares italianos, e também os franceses, em outubro de 1947, durante cúpula dos partidos comunistas europeus em Belgrado. A Iugoslávia de Tito tinha legitimidade por levar às últimas consequências o conceito de frente popular, varrendo os ocupantes alemães e a burguesia local no mesmo processo, fazendo da luta antifascista um elo da revolução operária.

Acusava-se os comunistas italianos e franceses de terem transformado uma tática transitória em linha estratégica, abdicando do papel hegemônico do proletariado na libertação antifascista e trocando o objetivo revolucionário pelo horizonte de uma democracia liberal que pudesse ser gradualmente reformada. As críticas também miravam a participação demasiado longa em governos burgueses, até serem expulsos pelos partidos capitalistas, na eclosão da guerra fria, além da dissolução incondicional dos exércitos guerrilheiros e a entrega de seus arsenais, com a assimilação à ordem institucional do pós-guerra.

O Partido Comunista da União Soviética oscilaria acerca dessas avaliações nos anos seguintes, até revisá-las quase por completo após a morte de Stálin, em 1953, e a consolidação da liderança de Nikita Kruschev, durante o XX Congresso do PCUS, realizado em 1956. O fato é que, mesmo enfrentando forte tensão dentro de sua própria organização e causando desgosto em setores do movimento comunista internacional, Palmiro Togliatti acabaria por estabelecer novos paradigmas sobre a relação entre fascismo, democracia e socialismo, bastantes distintos da política dimitroviana.

O chefe dos comunistas italianos separara o combate ao fascismo da luta contra o capital financeiro, autonomizando a questão democrática em relação ao sistema econômico e a dominação de classe. Ao fazê-lo, abria portas para coalizões com partidos burgueses, viabilizadas se a pedra angular fosse o enfrentamento a regimes autoritários ou a defesa da ordem democrática. Tampouco seria condição indispensável, nesse tipo de aliança, a hegemonia do proletariado, da “frente única proletária antifascista”, como formulara Dimitrov: o denominador comum dessas coligações, a democracia liberal, não dependia de eventual protagonismo dos partidos de esquerda, que deveriam disputar a direção desses movimentos sem negá-los, com o intuito de radicalizar seu conteúdo programático.

As frentes populares, nas resoluções de diversos partidos comunistas, aos poucos foram cedendo lugar às frentes amplas e democráticas. Essa variável tática, apesar de formalmente determinada pela análise da realidade concreta de cada país, em muitas situações passou a estar amparada na teoria da “democracia progressiva”, também de Togliatti, em uma releitura do conceito gramsciano de hegemonia. A transição do capitalismo ao socialismo, por essa interpretação, deixava de ser produto do enfrentamento direto entre as classes e seus partidos pelo poder político, para ser uma construção gradual e sem ruptura revolucionária. Dentro do próprio Estado liberal, condicionado pelo pacto democrático do pós-guerra ou da derrocada de regimes fascistas, as classes trabalhadoras poderiam encurralar os núcleos duros do capital, passo a passo, a partir de alianças mutáveis ao redor de objetivos parciais e cumulativos, cujo avanço desidrataria a hegemonia da burguesia sobre a institucionalidade e a sociedade.

As teses togliattianas, nos anos 60 e 70, viriam a ter crescente influência no movimento comunista e na esquerda mundial, muitas vezes embaladas como interpretação certificada do pensamento de Gramsci. Minguaram quando o capitalismo fez seu giro neoliberal na década de 80, armando sucessivas ofensivas contra o mundo do trabalho e o modelo de bem-estar social. O desmantelamento das bases econômicas de confluência entre as ideias socialistas e o republicanismo burguês, acelerado com o fim da União Soviética, tornaria inócuo o estratagema desenhado pelo líder italiano.

Mas aí já é outra história.

(Publicado originalmente no Blog da Boitempo)

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