Crise na Ucrânia e Geopolítica no pós 2ª Guerra Mundial

A crise na Ucrânia é uma guerra pela hegemonia com quem os Estados Unidos não querem dividir. Mas a situação dos EUA é diferente da que desfrutava em 1944

Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky
Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky (Foto: Reuters)


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A assinatura recente da declaração conjunta entre a Federação Russa e a República Popular da China (RPC) de alinhamento e parceria estratégica, na eminência de um conflito armado entre a Ucrânia - aliada aos Estados Unidos, à Europa e aos demais países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) -, e a Rússia, agora com o apoio da China, nos leva a refletir sobre as significativas mudanças no mundo ao longo das décadas que sucederam a 2a Guerra Mundial. 

Nesse contexto, revisitar a conferência de Bretton Woods realizada em New Hampshire, Estados Unidos, onde 44 homens se reuniram e assinaram um Acordo, em 1944, cujos fundamentos até os dias atuais balizam a “ordem econômica mundial”, torna-se importante. Não quero dizer que são momentos comparáveis, com quase oito décadas de distância, num mundo que sofre transformações quase que instantâneas. Naquele momento, urgia lidar com a devastação imediata causada pela guerra e lançar as bases para um mundo pós-guerra, mais pacífico, próspero e com menos desequilíbrios estruturais. Os princípios fundamentais de Bretton Woods buscavam assegurar proteção contra crises, cooperação, multilateralismo, prevenção de grandes déficits e superávits nas transações internacionais e promoção de bem-estar social. A economia mundial era, então, dominada pelos Estados Unidos, que pouco sofreram com a guerra, muito pelo contrário, a nova guerra trouxe de volta os dias de ouro à economia Norte Americana, quando o Estado passou a deter o poder sobre a economia, promovendo grandes exportações para suprir a guerra e ativar seus negócios. 

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A grande depressão dos anos 1930, deflagrada pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, e convertida em crise sistêmica mundial, havia sido contornada, em parte como resultado do New Deal, programa de recuperação econômica realizado no governo do presidente Franklin Roosevelt  para reerguer a economia norte-americana, com medidas keynesianas, a saber:  controle sobre bancos e instituições financeiras, criação da previdência social e a construção de obras de infraestrutura para a geração de empregos e renda. Delineou-se, no pós-guerra, sob a liderança dos Estados Unidos, um projeto coordenado de recuperação da economia, o Plano Marshall. Os Estados Unidos conseguiram expandir seu poder, ampliando suas áreas de dominação e moldando a arquitetura do sistema financeiro internacional agora baseado em sua moeda, o padrão dólar-ouro desbancando a moeda inglesa, a libra esterlina, que prevaleceu entre 1870-1914. O período entre a queda da libra e ascensão do dólar foi de muita instabilidade no sistema e guerra entre moedas. 

Aliás, é interessante lembrar que o maior economista do século XX, John Maynard Keynes estava em Bretton Woods, representando a Inglaterra, mas sua proposta de organização da economia mundial e cooperação internacional foi vencida. A paridade da moeda americana com o ouro foi mantida, na base de um dólar igual a 35 onças de ouro e as demais moedas foram atreladas ao dólar, com paridade fixa, porém reajustáveis, com limites de flutuação de 1%. Foi também resultado da Conferência de Bretton Woods, a criação de instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), para corrigir desequilíbrios temporários de balança de pagamentos e administrar a paridade cambial; e o Banco Mundial, o BIRD, com a finalidade, como sugere a própria sigla, de tornar-se um banco internacional para reconstrução e desenvolvimento. Os países europeus estavam enfraquecidos com a guerra e sem condições de prover o mundo e a si próprios, com a liquidez necessária para a recuperação. A ideia era de facilitação de empréstimos para reconstrução da Europa e para que os países pudessem se colocar de novo no caminho do desenvolvimento econômico, em condições mais favoráveis e seguras do que os emprestadores privados ofereciam.  Já existia o Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês) criado em 1930 para trazer segurança ao sistema financeiro e monetário por meio da cooperação entre os bancos centrais dos países participantes. Participaram da criação do BIS, em 1930, os governos da Bélgica, Itália, Reino Unido, Japão e Suíça. Sua função inicial era administrar os valores que seriam pagos pela Alemanha a esses países como sanção compensatória após a I Guerra Mundial. O BIS, sediado em Basileia, Suíça, hoje congrega 60 países e visa criar regras a serem aplicadas por todos os Bancos Centrais, com objetivo de regulamentar e trazer uniformidade ao sistema financeiro internacional. A terceira instituição criada foi o GATT que depois virou a Organização Mundial do Comércio (OMS). Essas organizações persistem até os dias atuais.

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Os Estado Unidos, a partir da guerra, se consolidaram como a maior economia do mundo, rompendo com séculos de predomínio europeu. Mas não houve trégua.  A Guerra Fria foi iniciada logo após a 2a Guerra Mundial, em 1947, instigada pelo discurso violento realizado pelo então presidente americano, Harry Truman, em março de 1947, contra a “ameaça comunista”, quando diz que os EUA assumem o compromisso de defender o mundo dos soviéticos. A disputa travada entre americanos e soviéticos, resultou em uma forte polarização que afetou as relações internacionais das nações como um todo e desencadeou a corrida armamentista e a corrida espacial que dotaram os EUA e a Rússia dos maiores poderes bélicos do Planeta. A separação entre países capitalistas e socialistas, no contexto da Guerra Fria, levou à caracterização dos países em primeiro, segundo e terceiro mundos. Primeiro mundo formado por países capitalistas desenvolvidos ou ricos; segundo mundo agregando países socialistas e o terceiro mundo formado por países subdesenvolvidos ou pobres que se aliaram uns aos países capitalistas e outros aos socialistas.

Em termos geopolíticos, o movimento de globalização do pós-guerra é acompanhado pelo processo de regionalização, destacando-se a formação, consolidação e expansão de vários blocos regionais: i) o bloco europeu que evoluiu para União Europeia (1992), ii) o bloco dos países do sul da América Latina, o Mercosul (1991), iii) na Ásia a APEC (1993) e a Asean (1967), iv) Nafta, 1994, reunindo países da América do Norte, v) União Africana (2002), visando agir em conjunto para melhor se posicionarem no processo de globalização. Surgiram também blocos envolvendo vários continentes, destaque para o Brics (2006), reunindo Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul. Tornar-se grande para competir como os grandes. 

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Tratados militares foram assinados. Sob a liderança dos EUA, em 1949, surgiu a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) acordo militar para fortalecer os laços entre os capitalistas. Como reação à criação da Otan, foi assinado o pacto de Varsóvia, na mesma direção da Otan, só que congregando os socialistas. Em 1961 foi construído o muro de Berlim, grande símbolo da bipolarização do pós-guerra, derrubado em 1989, e a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) aconteceu em 1991, assim como o fim do Pacto de Varsóvia. A URSS, Estado multinacional socialista existia desde 1922, criado após a Revolução Russa liderada por Vladimir Lenin. Curiosamente, o “golpe final” à URSS pode ser considerado a declaração de independência da Ucrânia, em 24 de agosto de 1991. 

O capitalismo triunfou, agora sob nova roupagem, o neoliberalismo, questionando o papel do Estado para regular e dinamizar a economia e atribuindo ao “Deus Mercado” que se autorregularia, o papel de arbitrar conflitos e deixar os preços livres para que automaticamente convergissem para preços de equilíbrio nos mercados de toda ordem, corrigindo desequilíbrios – oferta e demanda em mercados internos e externos, inclusive nos mercados de trabalho e câmbio.  O Consenso de Washington, em 1990, sacramenta o novo momento do capitalismo. Uma ideologia do laissez-faire, em um mundo onde já prevaleciam empresas monopolistas e oligopolistas, que se internacionalizavam com poderes de ditar preços e, portanto, incompatíveis com mercados concorrenciais.   

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Assim, entre os séculos XIX e as primeiras décadas do século XXI, o modo de produção capitalista se consolida como modelo dominante, gerando um crescimento espetacular da produtividade e do consumo (sociedade do consumo de massa) e inovações tecnológicas significativas. Cresceu e se internacionalizou, provocando grande acúmulo de capital, sem, contudo, ser capaz de gerar um crescimento estável e inclusivo. Aos poucos foi-se percebendo que as crises eram inerentes ao modo de produção capitalista. A crise de 1929 não foi uma exceção. Vieram as sucessivas crises; da “dívida’ dos países Latino-Americanos, crise do petróleo dos anos 1970, do Japão (1990), crise do México (1994), do Sudeste Asiático (1997), a crise da bolha imobiliária americana de 2008-2009 que se propagou pela economia mundial e se tornou a maior crise de caráter sistêmico, desde a grande depressão de1929. 

Outro fato marcante, em 1971, e que desestabilizou a economia global, foi o término do padrão ouro-dólar que funcionou desde a segunda metade da década de 1940 - com o fenômeno inflacionário e os desequilíbrios externos que se abateram sobre os Estados Unidos na década de 1960, o sistema ruiu. Em 1971, no governo de Nixon, os Estados Unidos, frente a aumentos na demanda por ouro, romperam, unilateralmente, com o Acordo firmado em Bretton Woods, e o dólar perdeu o lastro, começando a flutuar. No final da II Guerra Mundial os estoques de ouro dos EUA eram grandes o que viabilizava o lastro, mas com o aumento na demanda por ouro o sistema não se sustentou. As demais moedas perderam a conversibilidade e muitas adotaram regimes de câmbio flutuante. 

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Nos anos 1970 triunfam líderes políticos conservadores, como Margaret Thatcher, no Reino Unido, em 1979, e Ronald Reagan, nos EUA, em 1980, que agem em consonância com o ideário neoliberal. Eles realizaram uma série de privatizações e retiraram inúmeros benefícios sociais que eram concedidos à população pelo Estado, com o objetivo de reduzir os gastos estatais. Essas medidas encontraram diversas resistências, principalmente no caso inglês, com uma forte ação contrária de sindicatos, que lutavam contra o desemprego. Após o final da década de 1980 e durante as décadas de 1990 e 2000, vários países passaram a adotar o receituário neoliberal, principalmente na América Latina, sob o governo de regimes militares ditatoriais. Países como Chile, durante a ditadura de Augusto Pinochet, imediatamente aderiram ao neoliberalismo. Argentina, México e Brasil, também, iniciaram uma série de medidas que restringia a participação do Estado na vida econômica e social.

No início do Século XXI, nos anos 2000, novos atores se destacam no panorama mundial. Nos Estados Unidos o democrata Barack Obama presidente entre 2008-2016 é sucedido pelo republicano, conservador e controverso Donald Trump que permanece de 2017 a 2020. Em 2021, voltam os democratas com Joe Biden. A política externa americana, contudo, continua a mesma de embargo a Cuba e interferência na soberania dos povos para traçarem seus próprios destinos como fizeram nas guerras do Vietnam, do Iraque, do Afeganistão.  

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Na Rússia, a figura dominante nesse século XXI é o Vladimir Putin desde sua eleição como presidente em 2000, inicialmente servindo por dois mandatos, depois ocupando o posto de primeiro-ministro por mais quatro anos, para depois reassumir a presidência em 2012, e ser reeleito em 2018. Entre os projetos de Putin está, seguramente, fazer a Rússia voltar ao cenário mundial como protagonista e não figurante. Lutou com a Ucrânia pela anexação da Crimeia, em 2014. Na Alemanha, a figura de destaque foi a Angela Merkel, primeira-ministra da Alemanha entre 2005-2021, que liderou os alemães durante a crise financeira internacional de 2008, a crise da Zona do Euro, a anexação da Crimeia, na Ucrânia, pela Rússia, em 2014, a crise dos refugiados na Europa, em 2015 e 2016, e durante a pandemia de Covid-19. Alemanha e Rússia têm uma ligação forte por conta da dependência da Alemanha do gás natural produzido pela Rússia, que detém 19% das reservas mundiais e exporta quantidade substancial para Alemanha. A suspenção intempestiva da certificação do gasoduto Nord Stream 2 que transporta gás da Rússia para Alemanha, pelo novo chanceler alemão Olaf Scholz, não interessa a nenhuma das partes. Petróleo e gás, permeiam muitas crises sistêmicas globais. Certamente Angela Merkel está fazendo falta, como boa gestora de crises e negociadora de consensos, nesse momento de tensão entre a Rússia e os Estados Unidos aliados com o bloco dos países da Europa Ocidental, reunidos na Otan. A razão do conflito é a ameaça que representa, para a Rússia, a entrada da Ucrânia na Otan e o avanço de forças militares perto da fronteira já que são países vizinhos. Em artigo recente o professor da UFRJ, José Luís Fiori sugere que “no caso do “ultimato russo”, a questão imediata que está em jogo é a incorporação da Ucrânia pela Otan, mas o verdadeiro problema de fundo é a exigência russa de revisão das “perdas” que lhe foram impostas depois da dissolução da União Soviética”. Rússia e China se opõem à expansão da Otan e pedem que a aliança do Atlântico Norte abandone suas abordagens ideológicas da Guerra Fria.1 

Mas, para mim, o fato novo mais importante no Século XXI, é o despontar da China como superpotência na economia mundial. A influência da China é notória e inquestionável. Uma economia controlada há mais de 70 anos pelo Partido Comunista Chinês (PCCh), e com uma dinâmica de crescimento extraordinária, se colocando como o segundo maior PIB na economia mundial, com uma capacidade de inovação tecnológica que se contrapõe a modelos de economias socialistas, em particular o caso da antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) cuja crise e dissolução se deveu, em parte, à incapacidade de inovar. 

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A recente aliança entre a República Popular da China e a Federação Russa, estremece a geopolítica mundial, assombra os Estados Unidos e seus aliados da Europa e reforça a ideia de que o sistema de Bretton Woods não mais se sustenta. A superpotência econômica e a superpotência bélica, socialistas, anunciam um discurso de inserção internacional diferente, defendendo de forma intransigente a soberania nacional e o direito de cada povo decidir seu próprio destino, desde que respeitado o mesmo direito de todos os demais povos. A partir de 2003, um conjunto de ideias, defendidas pelas autoridades do PCCh, constituiu-se como a diretriz para acompanhar a inserção internacional da China, dentre eles, os conceitos, de “ascensão pacífica”, “caminho de desenvolvimento pacífico” e “mundo harmônico” para apaziguar os temores do Ocidente diante do crescimento chinês, e mostrar a China como uma potência “bondosa”, que respeita as regras estabelecidas. Os presidentes mais recentes Hu Jintao (2003-2013) e Xi Jiping (desde 2013) foram coesos na defesa dos princípios defendidos for think-tanks chineses, sob a liderança de Zheng Bijan, presidente do China Reform Forum, uma organização acadêmica não governamental, que criou as bases da narrativa para a ascensão da RPC ao status de grande potência, de forma pacífica. Essas noções se encaixam na concepção de um mundo multipolar, onde a segurança se estabelece e a ideia de benefício mútuo, advogando a necessidade de democratizar cada vez mais as relações internacionais. Essas ideias não dialogam com soluções de guerra para conflitos internacionais, levando a crer que não haverá invasão à Ucrânia contrário ao que vem propalando o presidente norte-americano Biden. 

Concluindo, é evidente que o sistema arquitetado em Bretton Woods, além de ultrapassado para o atual momento, nunca conseguiu cumprir suas promessas de aumentar a produtividade, aumentar a eficiência e promover crescimento e bem-estar social em nível mundial, de forma sustentável. Muito pelo contrário, no Mundo hoje, sob a égide do capitalismo, persistem baixa produtividade, crescimento lento, iniquidades vergonhosas na distribuição de renda e riqueza e recorrentes eventos climáticos extremos provocando catástrofes sem precedentes, resultado de um crescimento que não respeita sequer os limites impostos pela natureza. De forma mais dramática esses resultados se manifestam nos países em desenvolvimento, retratados pelos graus elevados de desigualdades, desemprego, fome e miséria.  

A crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19, que matou milhões de pessoas e deprimiu a economia mundial a partir de 2019, ainda não foi superada. Podemos fazer melhor do que reconstruir o mundo pré-pandemia. O mundo clama pela multipolaridade. Os países sozinhos são incapazes de resolver os principais problemas que afetam o mundo atual. As falhas na resposta à crise da COVID-19 demonstraram ainda mais as deficiências do sistema de governança global vigente. Os princípios do sistema precisam ser profundamente revisados ​​para promover o bem-estar, a criação de empregos, o progresso. A crise criada na Ucrânia é uma guerra pelo poder, pela hegemonia de novos players com quem os Estados Unidos não querem dividir a sua supremacia. Mas a situação dos Estados Unidos hoje é bem diferente da que desfrutava em 1944. Com Joe Biden enfraquecido interna e externamente, as chances de serem desbancados da liderança global nunca foram tão reais.

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