Contrapontos ao neoliberalismo tucano
A leitura da política econômica no final de 2003 é que, depois de haver provado o gosto amargo da austeridade, o governo Lula havia restaurado a confiança na solvência do Estado, perdida na era tucana, que os investidores precisavam para que o país voltasse a cresce
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Alexandre Aragão de Albuquerque
Nada acontece por acaso. A falência da utopia neoliberal dos anos 90, nos governos Cardoso (PSDB, 1995-1998; 1999-2002), com a decretação do “Fim da Era Vargas”, ao instituir como política econômica a abertura dos mercados, a privatização de empresas estatais e a flexibilidade de contratos de trabalho, retirando direitos da classe trabalhadora, criou a oportunidade para a vitória do projeto de esquerda no Brasil.
A postura inicial dos governos Lula (PT, 2003-2006; 2007-2010) foi a de precaução tática, de modo a acumular forças para modificações posteriores da política econômica que melhor refletissem seu arco de apoio programático. De fato, uma coisa é fazer um recuo tático diante de uma situação econômica vulnerável, de modo a acumular forças para sair da defensiva. Outra, bem diferente, teria sido dar continuidade aprofundando a exploração neoliberal imposta à classe trabalhadora por FHC.
A leitura da política econômica no final de 2003 é que, depois de haver provado o gosto amargo da austeridade, o governo Lula havia restaurado a confiança na solvência do Estado, perdida na era tucana, que os investidores precisavam para que o país voltasse a crescer, permitindo a retomada do PIB em 2004, que por sua vez elevou receitas tributárias e retirou a dívida pública da trajetória explosiva dos juros em que FHC a havia condenado.
A política econômica petista voltou-se primeiramente para robustecer nossas reservas internacionais, puxadas pelo novo modo de expansão da economia mundial marcado pela sinergia entre Estados Unidos e a Ásia. Em 2003, o comércio mundial estagnou, antes de crescer perto de 15% ao ano pelos cinco anos seguintes, mas as exportações brasileiras para os EUA e União Europeia já dobravam em relação a 2002 e decuplicaram em relação a 2001. (BASTOS, Pedro P Z. Ascensão e crise do governo Dilma Rousseff. Revista Econômica Contemporânea, Número especial, p.1-63, 2017).
De fato, após dois mandatos consecutivos do governo neoliberal do PSDB, em 31 de dezembro de 2002, FHC entregava o Brasil a LULA com o dólar custando R$3,63 (ou seja, com uma desvalorização cambial da ordem de 327%), juros na estratosfera, o salário mínimo valendo R$200,00 (apenas US$ 55,09). O cenário social e econômico sob o governo tucano se agravou em função da alta taxa de desemprego, com as reservas internacionais tendo chegado ao fundo do poço de US$27,5 bilhões, forçando o Brasil a recorrer a mais um empréstimo ao FMI da ordem de US$ 30 bilhões, para não quebrar. Esta foi a herança deixada a Lula pelo governo FHC. (Banco Central, 2006).
Comparados com os números de 2002, em 31/12/2008 as reservas internacionais saltaram dos pífios US$27,5 para US$ 206,8 bilhões; o salário mínimo subiu para R$465,00, que representaram cerca de US$270,00, cinco vezes maior do que os US$55 do legado dos governos FHC. Com o desemprego caindo fortemente. (Banco Central, 2009). Registre-se que no final do governo Dilma Rousseff, com o Golpe em 17 de abril de 2016, as reservas internacionais chegaram a US$380 bilhões.
Conforme Bastos (op. cit.), também se iniciou em 2003 o boom das exportações industriais para a América do Sul e o boom das exportações de commodities para a China. No centro do comércio multilateral, a China ajudou-nos a despeito de nossos altos superávits fiscais e juros, seja importando commodities brasileiras, como estimulando outros países sul-americanos que tinham juros e superávit primário muito menores e cresciam mais que o Brasil, com os quais tivemos grandes superávits comerciais puxados por exportações industriais. Mas nem tudo resultou de “sorte”, pois a promoção das exportações industriais era um elemento essencial da cooperação Sul-Sul que passou a caracterizar a diplomacia brasileira sob o comando de Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães.
Mesmo atendendo às exigências dos credores da dívida pública na condução do tripé da política macroeconômica, o governo Lula cometeu “três contrapontos” em relação ao neoliberalismo tucano. Primeiro, vetou novas privatizações e buscou restaurar a capacidade de investimento das empresas estatais, particularmente no setor de petróleo, gás e energia elétrica. Isso estimulou o ramo de bens de capital, construção naval e grandes empreiteiras, consolidando politicamente o apoio à frente neodesenvolvimentista das frações empresariais denominada de “burguesia interna”. A frente neodesenvolvimentista se constituiu como uma reação ao avanço global do capital estrangeiro e à retração do investimento estatal propostos pela frente neoliberal liderada pelo PSDB. (BOITO, Armando. Governo Lula: a nova burguesia no poder. São Paulo: Alameda, 2012).
No segundo contraponto, o governo Lula restaurou o papel ativo dos bancos públicos para execução de políticas de desenvolvimento produtivo e expansão do mercado interno. O BNDES deixou de apoiar consórcios privados e fundos de pensão em programas de privatização, acelerando a expansão do crédito para investimentos em nova capacidade produtiva, infraestrutura e para a formação de conglomerados nacionais capazes de controlar cadeias globais de valor e competir com os grandes grupos multinacionais. Os bancos públicos comerciais, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, expandiram o crédito para agricultura (agronegócio e familiar), construção civil, pequenas e médias empresas, além de apoiarem os programas de crédito consignado que elevaram substancialmente o crédito para consumo no Brasil, contribuindo para a grande expansão do mercado interno (MARCOLINO, L. C.; CARNEIRO, R. (Orgs.) Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil: do Plano Real à crise financeira. São Paulo: Publisher Brasil e Editora Gráfica Atitude, 2010).
E finalmente, como último contraponto aqui destacado, o crescimento do mercado interno de massas foi apoiado pela política salarial, trabalhista e social que, respectivamente: i) elevou o salário mínimo real em 70% entre 2004 e 2014, com impacto no mercado de trabalho e nas pensões e aposentadorias do sistema de seguridade; ii) fortaleceu sindicatos e exigiu a formalização do emprego, com salários e direitos melhores, incluído o seguro desemprego; iii) ampliou o conjunto de transferências sociais, notadamente o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada e o bônus salarial, e recuperou o gasto na oferta de serviços públicos. (POCHMANN, M. “Impasse entre mobilidade e polarização recentes no capitalismo brasileiro”. In: BELLUZZO, L. G.; BASTOS, P. P. Z. (Orgs.) Austeridade para quem? Balanço e Perspectivas do governo Dilma Rousseff. São Paulo: Carta Maior e Friedrich Ebert Stiftung, 2015).
Eis porque a Casa Grande se moveu violentamente contra o povo brasileiro: o fato de o presidente Lula haver colocado o Brasil numa posição altiva de crescimento do mercado interno e da massa salarial, além de forte protagonismo internacional visando a uma multipolaridade geopolítica e liderança brasileira no hemisfério Sul. O bolsonarismo nada mais é do que a versão debochada, armada e extremada do neoliberalismo tucano, submisso aos interesses do Capital financeiro internacional, que volta à cena pelas mãos do Golpe de 2016, contando agora com o protagonismo explícito de setores das Forças Armadas (são mais de 6.000 militares em posições chaves no governo federal), antes contidos na caserna. Portanto, a herança que Bolsonaro deixará para Lula em 2023 será bem mais severa e complexa do que a deixada por FHC em 2003.
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