Contra a 'obediência cega', a defesa da 'melhor obra' da nação brasileira: a Constituição de 1988!

O que se vê hoje, em 22 de abril de 2022, é a destruição, pelo Presidente da República e por seus asseclas, de nossa Constituição Livre, a Constituição de 1988

Alan Santos/PR | Reprodução
Alan Santos/PR | Reprodução


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O Brasil ontem foi sacudido por uma decisão de um capitão reformado do Exército brasileiro, ora na Presidência da República, o Sr. Jair Bolsonaro, escudado aparentemente no apoio de generais e do grosso das forças militares, de alta e baixa patente: conceder graça e indulto ao deputado federal Daniel Silveira, objeto de uma condenação pelo STF, ainda em trânsito de julgado, por seus crimes. 

A notícia de ontem segue-se a outras, de teor semelhante: de indulgência em relação a crimes e a criminosos, não do tempo presente, mas do passado, dos Anos de Chumbo, da DitaDURA (não DitaBRANDA). A referida indulgência foi observada da parte do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, e do presidente do Supremo Tribunal Militar (STM), Luís Carlos Gomes Mattos. Ambos se pronunciaram de forma indecorosa, muito mais do que a habitualmente empregada por nossas lideranças militares, quando confrontados com as novas revelações sobre os horrores da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) e sobre o conhecimento deles por parte das instituições. Mourão declarou: ““Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. [risos]. Vai [SIC] trazer os caras do túmulo de volta?”. Já Gomes Mattos disse: “Garanto que não estragou a Páscoa de nenhum de nós. Apenas a gente fica incomodado, que vira e mexe vem. Não tem nada para buscar. Hoje vão buscar em passado, rebuscar o passado. Agora vão rebuscar o passado vão... Só varrem um lado, não varrem o outro”. 

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Enfim, o Presidente da República, que incita suas “milícias” insistentemente ao crime, agora perdoa um criminoso em condenação pela Suprema Corte; seus outros dois companheiros de farda fazem troça em relação aos crimes cometidos por militares no passado e, com isso, engajam-se na luta renhida pelo apagamento e negação da memória histórica, fazendo de descaradas mentiras “verdades” só aceitas pelos que os obedecem, por questões de hierarquia ou de fé cega em sua autoridade. 

O que nós, cidadãos, professores e historiadores, e, ainda, instituições, poderemos fazer? Cabe-nos, a “bem da verdade”, confrontá-los, “rebuscando o passado” e revelando o quanto estão entranhados, nas instituições militares e em nossa sociedade, princípios e valores diametralmente opostos à democracia. 

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Para tanto, vale a pena recuar bastante no passado, remontar à época da Independência do Brasil e analisar palavras de um grande paladino da liberdade, o jornalista Cipriano Barata, que não se intimidou diante dos despotismos e dos tiranos, ficando, devido a isso, encarcerado por mais de uma década. 

Em 9 de agosto de 1823, no número 37 de seu jornal Sentinela da Liberdade, de Recife, em Pernambuco, Cipriano abordou as lutas ocorridas proximamente na Província da Bahia, entre forças pró e contra a Independência do Brasil. 

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Logo no começo do artigo, o jornalista informou sobre a leitura de várias Proclamações da Bahia, lamentando o fato de “nossas tropas” estarem na condição de “escravas dos marotos” (isto é, dos portugueses), enquanto os “chamados nobres sacodem as traças e o pó de seus pergaminhos, para segurarem privilégios e foros destruidores dos Direitos da Humanidade”. Com essa sua última crítica, Barata fustigava os anseios nobiliárquicos de nossas elites, movidas pelo desejo “serem melhores” do que os outros, de distinguir-se. Manifestava um horror que o faria se antagonizar com d. Pedro I meses mais tarde. 

Dentro dessa perspectiva que conjugava uma dupla rejeição, ao despotismo português e à ânsia de distinção das elites brasileiras, no artigo, Cipriano discutiu o princípio da “obediência cega”. Representado como instrumento do despotismo, em vários momentos históricos, da Antiguidade até a contemporaneidade, na compreensão de Barata, tal princípio se encontraria numa proclamação do “Coronel Lima” (José Joaquim de Lima e Silva), datada de 24 de maio de 1823. José Joaquim de Lima e Silva, tenente-coronel, liderava nossas tropas. Era tio de Luís Alves de Lima e Silva, o futuro duque de Caxias e patrono do Exército brasileiro, personagem que, à época, também participava dos embates contra os portugueses. Na referida Proclamação de Lima e Silva, ler-se-ia: “‘Eu vos digo o que já sabeis e o que já sentis, oh, Soldados! É confiar e obedecer cegamente [a] todos os vossos superiores, do primeiro até o último em geral’”.

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Barata voltou-se contra esse princípio de “obediência cega”, dizendo que ele representava que “os soldados devem obedecer às ordens de Seus superiores em todos os casos e circunstâncias, ainda que seja para matarem os pais, parentes e amigos, ainda que seja para queimarem suas cidades e devastarem sua pátria etc.” Para Barata, isso seria “manifesta falsidade, erro e abuso, que nasce das preocupações do governo absoluto, do poderio dos malvados déspotas, que se elevaram como Senhores dos Povos, herdeiros dos homens e das Cidades e dominadores arbitrários das Nações”. 

Barata evocou princípios claramente procedentes do pensamento da Luzes em prol de sua argumentação, associando-os ao combate à “obediência cega” e, entre os déspotas, citou Alexandre Magno, do mundo macedônico; Mário, Scila e Nero, entre os romanos; os turcos; os que subjugavam a Ásia e África; os que conduziram ao “massacre de São Bartolomeu” e Napoleão Bonaparte, na França; e o rei Fernando VII, na Espanha. Segundo Barata, pelo princípio da obediência cega também os pernambucanos foram “tiranizados”, depois da derrota da Revolução de 1817 pelas tropas absolutistas de d. João VI. 

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Identificam-se, nessas críticas de Barata, argumentos de que ele se valeria posteriormente, em seu combate aos rumos autoritários e aristocráticos dados por d. Pedro I à Independência do Brasil. Nessas críticas, veem-se sua repulsa ao despotismo e, inversamente, a defesa que fazia da autonomia intelectual e política dos homens. E em pleno 2022, diante dos acontecimentos de ontem e da última semana, protagonizados pelo Presidente da República e por militares de alta patente e em postos de grande relevância institucional, as palavras de Cipriano Barata trazem-nos importantes ensinamentos. 

Aos militares, oferecem um alerta, não no sentido de incentivá-los a desrespeitar a hierarquia, princípio básico das Forças Armadas, mas de convidá-los a não incorrerem no erro da “obediência cega” e, mais ainda, da negação e de escárnio em relação aos erros cometidos, no presente e no passado: a democracia, a verdade e o bem-estar dos brasileiros, dentre eles dos próprios familiares dos militares, requerem, pelo contrário, a refutação da “falsidade”, dos “erros” e dos “abusos”. 

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A nós, cidadãos, as palavras de Cipriano constituem um estímulo para que manifestemos nossa indignação contra as atitudes despóticas do presente, para que exijamos a apuração dos erros e crimes, do presente e, igualmente, do passado mais ou menos recente. 

Às instituições, muito mais, tais palavras soam como um alerta gravíssimo e imperioso: é hora de deter o arbítrio e o despotismo, os golpes em curso e à vista! 

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Por tudo isso, relembremos, para concluir, as seguintes palavras de Cipriano Barata: foi pela obediência cega “que os baianos, em 1821, caíram nas mãos dos portugueses, seus inimigos; foi pela obediência cega que se atacou perfidamente, no Rio de Janeiro, dentro da Praça do Comércio”, uma reunião, por ordem dada pelo governo de d. João VI (ao que parece, pelo próprio d. Pedro) em 1821, produzindo o que ficaria conhecido como o ‘açougue dos Braganças’, gerando a morte de uma pessoa e várias outras feridas. Segundo Barata, ainda, “foi pela obediência cega que os infames portugueses conduziram as tropas a destruírem a melhor obra que produziu o Gênio daquela nação, isto é, a Constituição livre”. Enfim, o que se vê hoje, em 22 de abril de 2022, é a destruição, pelo Presidente da República e por seus asseclas, de nossa Constituição Livre, a Constituição de 1988, “a melhor obra que produziu o Gênio” da nossa nação! 

Urgem, portanto, a defesa da Constituição de 1988 e o combate incessante ao princípio da “obediência cega”, ardil de tiranos e déspotas. 

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