Contagem regressiva...
A gente vai sair desse pesadelo e lançar um novo sentimento de mundo sobre esse Brasil que nossos ombros ora suportam. Afinal, no próximo ano “há de ser outro dia”. Saravá!
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Daqui a um ano o Brasil terá, novamente, a oportunidade de escolher novos rumos, tomar vergonhar na cara, parar com a cantilena de ser “O país do futuro”, investir no aqui e agora, pois tem inúmeras potencialidades para isso. Não será uma “escolha difícil”, nem ninguém verá “lições de partir”, como no poema “Lua nova” escrito por mestre Manuel Bandeira em 1953, para o aeroporto de Paris. Diante do futuro cenário, alinhavo esta e outras memórias literárias.
É difícil imaginar que a opção será a continuidade da aventura que nos colocou nessa pindaíba marcada por falta de justiça, trabalho e pão. Além de tentar sobreviver a um vírus letal, temos que nos proteger contra outro, tão fatal quanto, o da ignorância capitaneada por um sujeito sobre o qual me reservo a usar um adjetivo. São muitos os textos em que essa categoria gramatical impinge, de forma cirúrgica, o retrato de sua figura. A expectativa é que assim como a identificação com suas práticas e pensamentos nefandos geraram um “ismo”, seu nome um dia será alçado à categoria de adjetivo para significar tudo que não presta.
Em tempos de “patriotismo às avessas”, pois o amor ao país significa destruir tudo e abrir portas e pernas ao estrangeiro cujo representante maior é aquele que tem mais invasões na cacunda, sempre em busca de defender seus próprios interesses por meio de bombas e ideologias. Bem diferente, portanto, da postura do poeta Gonçalves Dias que, longe daqui, produziu a romântica “Canção do exílio” (escrita em 1841, publicada em 1846), que exalta a saudade e a natureza brasileira sem lançar mão de um único adjetivo em suas cinco estrofes, divididas em três quadras e duas sextilhas.
Podemos contrastar a criação do bardo maranhense com uma canção que, além de ser uma das mais tocadas no exterior, põe o ufanismo no mesmo grau: “Aquarela do Brasil”, do mineiro Ary Barroso, composta em 1939. Para ilustrar seu canto-exaltação ao “Brasil brasileiro”, o compositor lança mão de adjetivos extremamente requintados: “inzoneiro”, “merencória”, “rendado”, “trigueiro” e “murmurantes”.
O projeto político que assumirá o Brasil a partir de 2023 terá como meta o substantivo que consagra aquela que foi considerada a música mais importante do Brasil no século XX, “Construção”, de Chico Buarque, lançada em 1971. O país que está nela é o que esqueceu de um dos pilares do suposto “milagre econômico” durante a ditadura: o trabalhador da construção civil. O rigor cabralino da canção de Chico é econômico nos adjetivos. Estes são usados para desconstruir a suposta rigidez dos substantivos: “passo tímido/bêbado”, “olhos embotados”, “paredes sólidas/mágicas”, “desenho mágico/lógico”, “pacote flácido/bêbado/tímido”, “passeio público”. Podemos usar, também, uma imagem criada por Caetano Veloso trinta anos depois, ao colocar o dedo na falácia sobre certa ordenação econômica que, movida pelos ventos da chamada globalização, iria impor “uma nova ordem mundial”. O Brasil, sempre propenso a assimilar “as ideias fora de lugar”, como demonstra o valioso ensaio de Roberto Schwarz (1977), avexou-se todo a entrar num dos vagões desse violento trem-bala. Para Caetano, porém, seria preciso, primeiro, fazer os deveres de casa. Em “Fora da ordem” (1991) ele escreveu: “Aqui tudo parece que ainda é construção e já é ruína/ Tudo é menino e menina no olho da rua/ O asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua/ Nada continua”. É triste saber que cinquenta anos depois dos versos de Chico e trinta dos de Caetano, continuamos à deriva.
Os artistas, dizem, têm um quê de profetas. Essas canções emblemáticas contribuem muito para mostrar as fraturas de nossa identidade e as ranhuras no processo civilizatório, como prova a eleição, na rabeira do sujeito que ocupa a Presidência, de várias excrescências para o Parlamento. Elas hão de voltar, em breve, às sombras do anonimato. A tragédia dos dias que passam também serviu para nos fazer conhecer melhor “o caráter” de quem fazia parte da história de nossa vida privada. São muitos os relatos que o inimigo nem sempre morava ao lado. Estava à mesa, na cama, na sala de estar ocupada por parentes e aderentes, que compartilhavam o espírito festeiro de aniversários e churrascos. Haja divã!
Talvez devamos lançar mão de dois personagens da dramaturgia para encarar os quatro anos sob o espírito do genocida-miliciano (não resisti!) como uma mistura entre pesadelo e realidade, numa trama tão bem urdida que ficamos sem saber quem é quem. O primeiro está na tragicomédia A vida é sonho, de Calderón de La Barca, que narra a trágica experiência de Segismundo, filho de Basílio, rei da Polônia, que vive confinado numa torre devido a um vaticínio. Seu único contato com o mundo é feito por Clotaldo, seu guardião e servo fiel do pai. O segundo em A megera domada, comédia de Shakespeare, centrada no funileiro Cristóvão Sly. Depois de acordar de uma carraspana ele é convencido, por um fidalgo e sua trupe, que é um lorde que ficara louco por quinze anos.
Por fim, podemos compartilhar da experiência traumática da mulher e suas duas filhas, quando o marido embeiça-se por outra em “Caso do vestido”, de Drummond. Traição, abandono, solidão, raiva, flerte com a morte. Depois de muito tempo, o arrependimento, a volta do marido pródigo e a possibilidade de consertar os estragos do passado. Mais Brasil, impossível! Quereríamos acreditar, como a mãe-narradora desses cento e cinquenta dísticos enfeixados em setenta e cinco estrofes, “de que tudo foi um sonho,/ vestido não há... nem nada.” Não foi. Mas a gente vai sair desse pesadelo e lançar um novo sentimento de mundo sobre esse Brasil que nossos ombros ora suportam. Afinal, no próximo ano “há de ser outro dia”.
Saravá!
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