Consuetudo (“novos hábitos”) pós Covid
Nenhum evento marcou mais o nosso país, e talvez o mundo, neste Século XXI, do que a pandemia Covid-19
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Fui Diretor Técnico do Hospital Municipal da Mooca e vivi o drama da pandemia Covid desde o início de 2020, este Hospital foi referência para o tratamento de Covid. Imagino a riqueza de detalhes que cada um de nós tem, como marca, da pandemia. A tristeza e a saudade eterna das pessoas que, precocemente, nos deixaram, as brigas com aqueles que diziam que o vírus era uma invenção ou que fora fabricado pela China, estes, depois, disseram que deveríamo-nos aglomerar, não tomar vacina e nem usar máscara… foi muita brutalidade para um tempo tão curto. Vivenciei, à frente do Hospital, três fases marcantes da pandemia.
A primeira, quando os médicos, no mundo inteiro, usaram diversas drogas “off label”, uso farmacêutico de droga não homologada pela autoridade legal, o SARS Cov-2 nunca tinha atacado humanos, não sabíamos nem que ele existia; foram usadas a cloroquina, a ivermectina e outras drogas que, logo comprovou-se mundialmente, não tinham nenhum efeito antiviral; as autoridades sanitárias do Brasil ainda estavam sem saber direito o que fazer, apesar de a OMS ter sido ágil na orientação. Merece registro a firmeza, em seguir a ciência e tomar medidas contra a pandemia, do governador de São Paulo (não discuto aqui posicionamento político). João Doria e outras autoridades tiveram, naquele período, o papel de minorar os estragos. Do outro lado, o presidente Bolsonaro usou a sua capacidade política para mobilizar uma parte do povo brasileiro para resistir a qualquer conduta que pudesse conter a pandemia. Desde o início, irresponsavelmente, tumultuou a possibilidade de o Brasil combater o vírus. Chegou de forma risível, se não fosse trágica, a dar caráter ideológico à ivermectina, uma excelente droga, mas não para curar o Covid.
A segunda, quando ficou estabelecido de forma sistemática o uso de máscara, o isolamento social, as medidas restritivas às aglomerações e etc. Aqui as posturas e os personagens são os mesmos. No Hospital, não foi fácil segurarmos as restrições às visitas, impedirmos a entrada de alguns religiosos, uns desejando falar mais alto que Deus, queriam benzer leitos ou fazer cultos. No Hospital que eu dirigia não permiti, a orientação do Secretário de São Paulo, Edson Aparecido, foi clara, a prioridade é combater a pandemia. Além das medidas sociais para criar barreiras ao vírus, os médicos se fixaram em atender precocemente os doentes, isolá-los o máximo possível, prescrever as drogas de uso off label, corticoide, anticoagulante, azitromicina, e fornecer oxigênio quando fosse o caso. Ficou evidente, para a maior parte da sociedade, a importância do SUS. Paulatinamente, as autoridades sanitárias responsáveis do Brasil e a maioria da população foram compreendendo a gravidade da pandemia e a necessidade de aprofundar as medidas coletivas para combatê-la, como isolamento social, uso de máscara e higienização das mãos, entre as principais. Em paralelo, os Governos Municipais, Estaduais e o Ministério da Saúde, até a demissão do Ministro Mandetta (depois foi aos trancos e barrancos), tomaram medidas importantes para ampliar o atendimento e evitar o colapso do Sistema de Saúde. Infelizmente, quase que num movimento esquizofrênico, uma outra parte do país padecia, capitaneada pelo Chefe do Estado e do Governo Federal, que ocupava as redes sociais, os horários nobres da televisão, em rede Oficial, para “receitar” drogas sabidamente ineficazes no combate ao vírus, promover concentrações por meio de motociatas e passeatas, entre outras condutas inadequadas, para não usarmos termos mais duros. Chegou a limpar o produto do seu espirro (que nojo) na mão de um apoiador que o cumprimentava, é muita barbaridade! O Presidente dirigiu, conscientemente, movimentos solapadores das ações de saúde pública contra o vírus. Este tipo de conduta enfraqueceu o combate à epidemia, enfraqueceu as Autoridades Sanitárias e as medidas que o Brasil teria de tomar para superar a maior crise sanitária do século.
Nenhum evento marcou mais o nosso país, e talvez o mundo, neste Século XXI, do que a pandemia Covid-19. Os impactos social, político e econômico deixarão marcas indeléveis. O comportamento da humanidade mudou, por isso usei o termo consuetudo no título, de um lado a pandemia deixou uma imensa crise econômica, com falências e mudanças nos padrões de negócios e trabalho aos quais ainda não nos adaptamos. Hoje, várias empresas trabalham em home office, escolas funcionam uma parte em EAD, etc, de outro lado, como acontece em todas as crises, o homem procura o jeito para progredir. O desenvolvimento deste quadro de pandemia, apesar de bastante estudado, vem acompanhado de avanços inestimáveis nas ciências, como a produção, em tempo recorde, de vacinas, inclusive com o surgimento novas tecnologias antes impensáveis nas Ciências Biomédicas, a produção científica e troca de informações em tempo real projeta avanços imprevisíveis, com importantes desdobramentos para a saúde coletiva brasileira e mundial, para as ciências sociais e para a economia neste futuro próximo.
A terceira, o início da vacinação, numa observação empírica, já confirmada em diversos trabalho mundo afora, vi no Hospital que eu dirigia: antes das vacinas a maioria dos internados, e de quem ia a óbito, era de idosos; vacinamos inicialmente os idosos (não tinha vacina pra todo mundo), mudou o perfil dos internados e dos óbitos no Hospital. Senti a dor de chorar. Como não tínhamos vacina para todo mundo? Quanta angústia… quanto sofrimento… Vencemos! Vacina para todos, caíram as mortes, a pandemia entrou em outro patamar e as pessoas que contraíam a doença, em sua absoluta maioria, não evoluíam para casos graves.
A OMS recentemente retirou o caráter de emergência sanitária da pandemia, este é o grande salto no combate ao vírus, alcançado principalmente pelo advento das vacinas, mas a Pandemia não acabou, ela está enfraquecida e não vencida. Como saldo da polarização tosca que o mundo e o Brasil estão vivendo, criou-se uma situação perversa, ou melhor, aditou-se mais uma situação perversa: um movimento político e cultural do atraso contra o uso de vacina reúne milhões de pessoas, este é um campo fértil para o SARS Cov-2 se reproduzir e evoluir através de mutações para outros tipos de cepas ou de novos vírus. O outro lado da perversidade é a desigualdade social no Brasil e no mundo. Não adianta os EUA, Europa e os países em desenvolvimento terem acesso à vacina, com excedente de
doses, e os países pobres só terem acesso às parcas doações feitas pelos ricos. A vacinação tem de ser mundial, pois a circulação de pessoas hoje é imensamente diferente de outros momentos na história. Em nosso país vimos o peso da desigualdade social humilhar a todos nós, vimos idosos que, com a pandemia se recolheram em seus sítios, casas de praia ou apartamentos e, infelizmente, idosos que, para garantir a sua refeição, tinham de ir aos semáforos vender doces, entre outras coisas; idosos que gostariam de ficar isolados mas, nas suas casas, de um cômodo, às vezes, com um banheiro compartilhado com outras moradias, não poderiam nem pensar em isolamento. A pandemia mostrou o quão injusto é o nosso país, a diferença social é grande e este tema horizontalmente perpassa qualquer assunto que possamos debater.
A característica inovadora, desbravadora, pujante do homo sapiens nos trouxe até aqui, vamos vencer a pandemia, somos quase 8 bilhões. Há um lado das consequências da pandemia que pouco se discute, os estragos causados aos mais pobres, hoje temos muitos trabalhadores que perderam empregos e não puderam pagar suas contas, suas famílias foram desestruturadas. Alguns, milhares, destes foram morar na rua, muitas vidas destroçadas, são “invisíveis”, ninguém fala neles, muito menos em cadastrar os pobres que ficaram muito mais pobres com a pandemia e hoje não têm o que fazer. Gostaria de encerrar o texto falando da volta por cima que vamos dar e da implementação das novas políticas que o miserável do SARS Cov-2 acelerou, não consegui. Lembrei da poesia magistral de Gilberto Gil e Herbert Vianna:
A novidade veio dar à praia
Na qualidade rara de sereia
Metade o busto d'uma deusa Maia
Metade um grande rabo de baleia
A novidade era o máximo
O paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo prá ceia
Ah, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ah, de um lado esse carnaval
Do outro a fome total
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