Considerações técnico-jurídicas para uma nova legislação trabalhista

(Foto: Jefferson Peixoto/Secom)


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Em fevereiro de 2013, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) publicou um documento intitulado 101 Propostas de Modernização Trabalhista, de cujo teor se extraem, como seu nome bem indica, diversas sugestões de alterações à legislação trabalhista. Boa parte dos itens ali discutidos viria a ser objeto das modificações que a chamada Reforma Trabalhista, na forma da Lei n. 13.467/2017, incorporaria ao texto da CLT.

Cite-se, como exemplo, a obrigação do empregador de permitir o gozo do intervalo para repouso e alimentação pela integralidade do período legalmente assegurado – o chamado intervalo intrajornada.

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O artigo 71 da CLT disciplina que, em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda de 6 horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de 1 hora, e, salvo acordo escrito ou contrato coletivo em contrário (convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho), não poderá exceder de 2 horas.

O parágrafo 4º do referido artigo estabelece que, quando esse intervalo não for regularmente concedido pelo empregador, isto é, quando o horário destinado ao descanso intrajornada for concedido de forma reduzida ou quando não for concedido, o empregador ficará obrigado a pagar o período correspondente com um acréscimo de, no mínimo, 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho.

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Eis o posicionamento explicitado no documento da CNI:

“A legislação estabelece que o intervalo intrajornada dos trabalhadores deve ter, no mínimo, 1 hora de duração. Em algumas situações, em decorrência da dinâmica de certas atividades, as empresas concedem intervalos um pouco menores, com 40 ou 50 minutos de duração, ou mesmo os empregados enxergam a necessidade de retorno dentro de um período menor. Nessas situações, sem previsão legal, algumas decisões têm condenado as empresas a pagar como hora extra não apenas os minutos concedidos a menos no intervalo, mas uma hora integral”.

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Queixava-se a CNI de que “a definição do período a ser indenizado é feita por orientações jurisprudenciais, e não por lei”, motivo pelo qual existiam “diversas decisões judiciais conflitantes”.

O texto está se referindo, aqui, ao entendimento firmado pelo Tribunal Superior do Trabalho por meio da Súmula n. 437, conforme a qual a não concessão ou a concessão parcial do intervalo intrajornada mínimo, para repouso e alimentação, a empregados urbanos e ruais, implica o pagamento total do período correspondente, e não apenas daquele suprimido, com acréscimo de, no mínimo, 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho, sem prejuízo do cômputo da efetiva jornada de labor para efeito de remuneração, revestindo-se a importância devida de natureza salarial.

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A CNI apresentava, então, como proposta, a ideia de se fixar, para os casos de supressão parcial do intervalo intrajornada, a determinação do pagamento, de forma indenizada, apenas dos minutos suprimidos.

De fato, a chamada Reforma Trabalhista, promovida através da edição e publicação da Lei n. 13.467/2017, fulminou qualquer controvérsia acerca da temática quando alterou o parágrafo 4º do artigo 71 da CLT para obrigar o empregador a pagar, de forma indenizada, apenas o período suprimido, mantida a formação da respectiva base de cálculo mediante incidência de 50% sobre a remuneração da hora trabalhada.

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Em termos práticos, tome-se, como exemplo, um estabelecimento hospitalar onde atue um técnico de enfermagem submetido a regime de escala, cabendo-lhe cumprir, de segunda a sábado, uma jornada de 7 horas e 20 minutos, totalizando a carga horária de 44 horas semanais, aproveitado o descanso semanal aos domingos.

O empregador, nesse caso, está obrigado a franquear ao empregado a concessão de 1 hora de intervalo para refeição e descanso, certo?

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Suponha-se, contudo, que o supervisor desse empregado, devido à alta circulação e rotatividade de pacientes durante o turno trabalhado, impusesse a fruição de apenas 30 minutos para fins de intervalo intrajornada, impossibilitando-se o gozo do período de repouso pela integralidade legalmente assegurada, no caso, de 1 hora.

Com base na regulação instituída pela Súmula n. 437 do TST, nessa hipótese, o empregado deveria receber o pagamento equivalente ao período integral, e não apenas a 30 minutos.

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Isto é, se o salário normal desse empregado fosse de R$ 1.100,00 por mês, então, fixando-se em 30 e em 4 a quantidade média de dias e domingos em cada mês, respectivamente, chega-se à quantidade média de 26 dias de trabalho por mês.

Diante dessa situação, suprimindo-se, diariamente, 30 minutos do total legalmente assegurado para fins de concessão do intervalo intrajornada, tem-se, como primeiro efeito, que seria devido ao técnico de enfermagem em questão, ao final do exercício mensal, além de seu salário normal de R$ 1.100,00, o equivalente a R$ 195,00, incidindo 8% a  título de depósito do FGTS sobre ambos os valores, ante a natureza salarial desta e daquela parcela, a teor do artigo 15 da Lei n. 8.036/1990.

Violada a norma protetiva de cumprimento do descanso intervalar por vários meses ao longo do ano, estar-se-ia diante de uma ocorrência habitual, o que, como segundo efeito, ensejaria sua aderência ao contrato, seguida do incremento da contraprestação devida, isto é, do salário, desdobrando-se, ao final, na consequente majoração do 13º salário bem como do terço pago por ocasião das férias. Como se o salário realmente devido desse trabalhador correspondesse ao total de R$ 1.295,00 (salário normal de R$ 1.100,00 por mês, além da média de R$ 195,00 por mês, em razão da violação do descanso intervalar).

Visava-se, dessa forma, compensar o trabalhador pelo descumprimento de uma medida que tinha por finalidade preservar sua saúde física e psíquica, conferindo ao fenômeno o merecido tratamento, que não é o de um  evento normal, mas excepcional, pois ofende a legislação e infringe um dever jurídico de cuidado e prevenção, nos termos do inciso XXII do artigo 7º da Constituição Federal, a atrair a devida punição ao empregador que a pratica, assegurando a devida reparação ao empregado por meio de uma vantagem salarial.

Observe-se, portanto, que a Reforma Trabalhista, aprovada em julho de 2017, conferiu à CLT um regramento cujas diretrizes o documento da CNI já havia lançado em fevereiro de 2013.

Em termos práticos, como a alteração afetou o trabalhador?

Aquele mesmo técnico de enfermagem do exemplo anterior, que, antes, ganhava, além do salário mensal de R$ 1.100,00, o acréscimo de, em média, R$ 195,00 por mês, em decorrência da violação diária do tempo intervalar, passaria, a partir de agora, a fazer jus apenas à metade daquele valor, no caso, R$ 97,50 por mês, sem qualquer efeito adicional sobre a quantia devida a título de contribuição do FGTS ou sobre, por exemplo, a quantia devida a título de 13º salário – ainda que a concessão parcial do repouso intrajornada continue a acontecer frequentemente.

De um modo mais simples: o técnico de enfermagem em questão começou a receber menos, embora seguisse sob carga horária e volume de serviço idênticos.

Outro exemplo que evidencia a influência exercida pelo documento da CNI, intitulado “101 Propostas de Modernização Trabalhista”, sobre as profundas mudanças que se avizinhavam diz respeito à jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas ininterruptas de descanso, a famosa jornada 12x36 ou, ainda, escala 12x36 (“12 por 36”), acerca da qual se comentará de forma mais detida noutra oportunidade.

Por ora, importa apenas saber o alcance projetado sobre a Reforma Trabalhista das ideias contidas no documento da CNI, o qual propunha “o reconhecimento legal da jornada de 12 horas de trabalho por 36 de descanso”.

Qual foi a solução adotada pela Reforma Trabalhista? Acrescentar à CLT o artigo 59-A, o qual facultou

“[…] às partes, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação” (negrito nosso).

Na verdade, a Reforma Trabalhista adotou regime ainda mais precarizante em comparação ao descrito no documento da CNI, uma vez que admitiu que a jornada 12x36 fosse pactuada individualmente entre empregador e o empregado. Ora, não é preciso inclinar-se à esquerda para convir que não há muito espaço de “acordo” quando a manifestação de uma opinião contrária representa um convite ao desemprego ou ao estado de incerteza e desamparo de quem permanece meses, senão anos, à procura por uma recolocação minimamente segura no mercado de trabalho formal.

Está-se tentando demonstrar que, embora se possa concordar que a Reforma Trabalhista tenha sido votada sob tempo recorde, não parece razoável afirmar que ela foi fruto de pouco debate. Ela já vinha sendo germinada bem antes da materialização do Projeto de Lei n. 6.787/2016, o qual viria a culminar na Lei n. 13.467/2017.

Debate existiu, sim – apenas o lado de lá nunca teve a intenção de que nossa voz fosse ouvida.

Cabe, porém, um questionamento sincero: ainda que se realizasse a ingênua hipótese de os segmentos mais organizados da classe operária serem aconchegados à mesa de negociação da burguesia, o que ofereceriam em resposta?

Será que não houve nenhuma transformação nas relações de produção desde 1º de maio de 1943, data em que aprovada a Consolidação das Leis do Trabalho, na forma do Decreto-Lei n. 5.452, até 14 de julho de 2017, data em que publicada a Reforma Trabalhista, que não justificasse uma ampla e profunda reformulação no ordenamento jurídico em vigor, até para, inclusive, resguardar o sistema de proteção social consagrado na Constituição de 1988?

Decerto, a norma jurídica não pode tipificar todas as situações manifestadas pela experiência, principalmente diante da inexorabilidade do desenvolvimento econômico e tecnológico como um dos fatores determinantes das relações humanas, embora possa traçar linhas gerais que lhe permitam o balizamento, circunscrevendo o âmbito científico-jurídico ao qual pertencerá o fenômeno objeto de regulação.

Aliás, não fosse a escolha da maioria do povo brasileiro para reconduzir o companheiro Luis Inácio Lula da Silva à Presidência da República, o prognóstico seria ainda mais aviltante, lúgubre e sombrio, havendo motivos palpáveis em que apoiar essa assertiva.

É que, em 29 de Novembro de 2021, o Grupo de Altos Estudos do Trabalho (GAET), instituído pelo então presidente Jair Messias Bolsonaro por meio da Portaria n. SEPRT/ME n. 1.001, de 4 de Setembro de 2019, divulgou seu Relatório Final, trazendo

“[…] propostas que, além de ajustes estruturais, se inserem na discussão de retomada do mercado de trabalho, com mais e melhor segurança jurídica para empregados e empregadores”.

Dentre as vertentes de estudo em que se dividia o GAET, destacava-se o Grupo de Direito do Trabalho e Segurança jurídica, o qual avocou, no referido Relatório, o papel de promover “a sintonia fina da reforma trabalhista de 2017”, sugerindo um conjunto de alterações não somente na forma de propostas legislação ordinária, mas também de emenda constitucional, a qual, se aprovada, ameaçaria a própria perduração do Direito do Trabalho como ramo autônomo e independente da ciência jurídica, ao sinalizar, por exemplo, a ideia de que se incluísse no artigo 7º da Constituição Federal a estranha garantia social que asseguraria ao trabalhador o direito de renunciar às próprias garantias sociais, além de aprofundar a prevalência do negociado sobre o legislado:

“XXIV - reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho e da ampla autonomia coletiva dos atores sociais;

XXXV – reconhecimento da autonomia do trabalhador e da manifestação individual de vontade, na forma e nos limites da lei;

XXXVI – regime trabalhista simplificado, facultativo ao trabalhador, com direitos e obrigações definidos em lei específica;

XXXVII - instâncias conciliatórias, e mediação e arbitragem, voltadas à pacificação social dos conflitos individuais e coletivos, nos termos da lei” (negrito nosso).

O relatório envolve outras proposições, como a inclusão, no texto da CLT, de dispositivos que dificultariam o reconhecimento de vínculo empregatício dos trabalhadores que operam sob intermédio de aplicativos eletrônicos, a exemplo deste:

“Art. 442. (...)

(§ único passa a 1º)

§2º. A prestação de serviços com o suporte de plataforma digital para seleção de clientes não configura vínculo empregatício entre o prestador de serviços e o operador da plataforma.”

 Noutra passagem, chega-se a aventar a extinção da multa de 40% sobre a totalidade do FGTS à qual tem direito o trabalhador demitido sem justa causa, passando o respectivo valor a ser apropriado pela União, e não mais pelo empregado:

“Por fim, com vistas a complementar os recursos do Seguro-Desemprego no financiamento dos aportes iniciais aos fundos individuais, a multa por demissão sem justa causa deixa de ser apropriada em parte pelo trabalhador e passa a ser paga integralmente ao governo. Esse dispositivo, além de assegurar a possibilidade de um aumento nos subsídios públicos a poupança precaucionaria dos trabalhadores, retira deles qualquer eventual incentivo que a apropriação da multa possa lhe dar para trocar de trabalho” (negrito e grifo nossos).

Vê-se, portanto, que a munição para a retomada do ataque aos direitos trabalhistas já está recarregada.

Assim como o documento da CNI esboçou os primeiros ensaios das mudanças que viriam a ganhar corpo na Reforma Trabalhista, a próxima saraivada já foi armada, prometendo ser ainda mais vigorosa, esmagadora e atordoante que a anterior.

De fato, a altura dos desafios que se assomam no horizonte dos próximos anos é proporcional à profundidade das derrotas consecutivamente impingidas à esquerda político-social e político-institucional a partir de 2016, as quais ainda ecoam no interior do domo histórico-cultural em que se ambientam as atuais relações econômicas e sociais, nada obstante o resultado das últimas eleições ter provocado uma ligeira dispersão da extrema-direita.

Com certeza, há muito trabalho pela frente.

Analisando-se o conteúdo do Programa de Governo da Coligação Brasil da Esperança, encabeçada pela candidatura do companheiro Luis Inácio Lula da Silva às eleições presidenciais de 2022, consta o compromisso de:

“[…] propor, a partir de um amplo debate e negociação, uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com especial atenção aos autônomos, aos que trabalham por conta própria, trabalhadores e trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores em home office, mediados por aplicativos e plataformas, revogando os marcos regressivos da atual legislação trabalhista, agravados pela última reforma e reestabelecendo o acesso gratuito à justiça do trabalho” (negrito nosso).

De fato, em 18.01.2023, os companheiros Ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, e Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva reuniram-se com representantes de centrais sindicais para anunciar a criação de grupo de trabalho para definir a nova política de valorização do salário mínimo, oportunidade em que também foi anunciado que serão criados grupos para discutir a regulação do trabalho por aplicativos e para elaboração de novas regras para a negociação coletiva entre trabalhadores e empresas.

Embora oportuna e promissora, a medida ainda está longe de se constituir uma resposta aos perigos que rondam o paradigma protetivo no qual se legitima a legislação trabalhista, conforme sistematizados e formatados no relatório do GAET, bem assim à extensão das consequências provocadas pelas reforma de 2017.

Com efeito, para se instaurar um novo modelo de regramento jurídico-trabalhista, é necessário não somente recuperar marcos legais mínimos para o equilíbrio das relações coletivas entre empregadores e empregados, mas também o fortalecimento da Fiscalização e da Justiça do Trabalho, dotando a tutela trabalhista, tanto no âmbito administrativo quanto jurisdicional, com normas específicas, destinadas à regulamentação de uma realidade jurídico-material e jurídico-processual muito mais complexa, dinâmica e diversificada do que a CLT havia pretendido disciplinar.

Assim, a meu ver, é urgente que o governo federal institua novo grupo de trabalho, estruturado e subdividido semelhantemente ao GAET, do qual se diferenciaria por reunir, em sua composição, todos e todas que atuam na tutela trabalhista administrativa e jurisdicional: Advogados e Advogadas Trabalhistas, Juízes e Juízas do Trabalho, Procuradores e Procuradoras do Trabalho, Servidores e Servidoras da Justiça do Trabalho, Auditores e Auditoras Fiscais do Trabalho, bem como Profissionais em Saúde e Segurança Ocupacionais (Engenheiros e Engenheiras do Trabalho, Psiquiatras, Psicólogos e Psicólogas, Médicos e Médicas do Trabalho etc.), ressaltando-se a todos e todas, na Portaria a ser editada para sua criação, que a participação de cada um e cada uma será considerada como prestação de serviço público relevante, não remunerada.

É o que, por ora, tenho a propor.

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