Como uma pinha que despenca da araucária

Vou até o quarto e vejo, estirado sobre a cama de casal, um vestido de noiva algo amarelado e puído, mas ainda altivo



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Ilustração de Luanna Falcão. Siga seu Instagram: @luanna.artworks

Ontem, enquanto eu esperava a abertura do farol para atravessar a avenida A., uma das artérias do município de B., no Paraná, uma senhorinha algo arqueada pelo reumatismo, com cabelos brancos e desgrenhados como nuvens e olhos bem azuis, se achegou ao meu lado. Ato contínuo, eu lhe ofereço meu braço esquerdo em arco para caminharmos juntos.

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Logo fico sabendo que dona Anastácia é polaca, natural da bela e medieval Cracóvia, onde estive há pouco mais de 10 anos, em janeiro de 2009. Quando ela descobre que meu pai era filho de poloneses, se chamava Tadeu e nasceu em Joaquim Távora, cidadezinha ao norte do Paraná, a senhorinha leva a mão direita curvada como uma pequena garra até o meu queixo e me mira como se estivesse me escaneando:

– Nariz grande de italiano, lábios finos de eslavo.

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Ato contínuo, dona Anastácia me toma pela mão e me conduz, bairro adentro, até um casebre rústico de madeira, com tábuas beges e enfileiradas em pé, à diferença das isbás russas, em que as tábuas ou toras são justapostas deitadas.

Na soleira do casebre, duas velhas cadeiras de vime – em uma delas, repousa um chapéu preto, desbotado e puído, e eu já imagino que dona Anastácia logo me apresentará seu marido. 

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À entrada da sala pequenina, um cuco de madeira fosca tenta marcar (e estancar) o tempo com a cadência de suas badaladas. Sobre uma cômoda, uma vitrola com a agulha suspensa quase resvala um vinil que ainda está lá, todo empoeirado, e eu quero saber que música ele tocou.

Súbito, enquanto leva o indicador direito vergado do vinil para o retrato de seu casamento, dona Anastácia começa a cantar com um tom triste e intenso, como se estivesse se despedindo.

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Ela vai até a parede, saca o retrato e me aponta seu Ladislau, novamente levando o dedo da vitrola para a foto já amarelada.

– Foi a última música que ouvimos juntos, uma canção da nossa Polônia: ela fala da partida do amado que vai pra guerra... e não volta. E veja só: você se parece com o meu Ladislau!

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À exceção da fronte um pouco mais alta do que a minha e das sobrancelhas mais ralas e delgadas, Ladislau bem poderia ter sido meu avô, meu pai ou meu irmão mais velho. “Teu duplo” – sentencia o silêncio dos olhos vidrados e marejados de dona Anastácia, cujo lábio inferior algo descaído treme de saudade.

– Espere um pouco: eu vou cozinhar um charuto pra você, o prato preferido do Ladislau. Sente-se aqui na poltrona dele.

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Ainda com a reentrância côncava das costas de Ladislau, a poltrona resguarda a memória tangível do amor de dona Anastácia como uma libélula coagulada pelo âmbar.

Minha vó Závila, cozinheira de mão cheia, preparava charutos inesquecíveis aos domingos. Com mãos lépidas, ela enrolava a carne cozida e ainda fumegante com grandes folhas de repolho, que sempre me pareceram orelhas de elefante. Quando eu lhe dizia isso, a vó Závila ria com o canto direito da boca e me afagava o cocuruto com a mão gentil, de cujo dorso, repleto de nódoas marrons, saltavam veias bojudas como os canos que desciam da calha da casa dela lá em Santo André.

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Envolto pela névoa da memória e sentado na poltrona de Ladislau, eu não me dou conta de quanto tempo se passou e já não ouço a cantoria de dona Anastácia em meio ao chiado das panelas no fogo.

– Dona Anastácia, a senhora deixou a luz do quarto acesa.

Nenhuma resposta.

– Dona Anastácia!

Nada.

Vou até o quarto e vejo, estirado sobre a cama de casal, um vestido de noiva algo amarelado e puído, mas ainda altivo. (Sinto um calafrio escalando as vértebras.)

Vou até a cozinha. A carne já está picadinha sobre a tábua de madeira; as folhas de repolho, devidamente empilhadas; a faca, de longo corte, tem o cabo branco e perolado, como a da minha vó Závila. A água vai fervendo na panela que chia, mas onde está dona Anastácia?

Quando miro de soslaio, com o canto direito do olho, vejo dona Anastácia sentada num banquinho, junto à quina da parede, com os braços trançados sobre o peito, como quem quer abraçar. Ela olha para o teto, quieta (pior: muda), e tem a boca entreaberta. (O calafrio chega à nuca.)

Chacoalho levemente seu ombro esquerdo:

– Dona Anastácia! Dona Anastácia!

Quando faço menção de colocar o indicador e o dedo médio direitos sobre a jugular para tentar sentir o pulso, a cabeça de dona Anastácia tomba sobre o peito como uma pinha que despenca da araucária.

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