Como um míssil em Cabul se conecta a uma Presidente da Câmara em Taipei

A exibição de poder de Washington ao eliminar Al-Zawahiri da al-Qaeda não será reciprocada por Pequim com relação à provocadora visita de Nancy Pelosi a Taiwan

Nancy Pelosi
Nancy Pelosi (Foto: Reuters)


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Por Pepe Escobar, no The Craddle

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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É assim que termina a "Guerra Global ao Terror", vez após vez: não com um estrondo, mas com um gemido. 

Dois mísseis Hellfire R9-X lançados de um drone Reaper MQ9 sobre a sacada de uma casa em Cabul. O alvo era Ayman Al-Zawahiri, com uma recompensa de 25 milhões de dólares  sobre sua cabeça. O antes invisível líder da Al-Qaeda 'histórica' desde 2011, foi finalmente abatido.  

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Todos nós, que passamos anos de nossas vidas, em especial na década de 2000, escrevendo e rastreando Al-Zawahiri, sabemos que a 'inteligência' dos Estados Unidos usou de todos os truques conhecidos – e desconhecidos – para encontrá-lo. Bem, ele nunca se expôs na sacada de uma casa, e muito menos em Cabul.

Um outro ativo descartável  

Por que agora? É simples. Ele não tem mais utilidade – e sua validade já venceu  há muito.  Seu destino foi selado como uma espalhafatosa 'vitória' de política externa – um remix do 'momento Osama bin Laden' de Obama, que boa parte do Sul Global sequer irá notar. Afinal, reina a percepção de que a Guerra Global ao Terror de George W. Bush há muito se metastizou na ordem internacional "baseada em regras", que na verdade é "baseada em sanções econômicas".  

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Essa foi a deixa para o que aconteceria 48 mais tarde,  quando centenas de milhares de pessoas por todo o Ocidente estavam grudadas na tela do flighradar24.com (até que o web site fosse hackeado), rastreando o “SPAR19” – o jato da Força Aérea que levava a Presidenta da Câmara  Nancy Pelosi – enquanto a aeronave lentamente cruzava Kalimantan de leste para oeste, o Mar de Celebes, dirigindo-se ao norte seguindo em paralelo ao leste das Filipinas, fazendo então uma curva fechada e rumando a oeste em direção a Taiwan, em um espetacular desperdício de combustível de jato para evitar o Mar do Sul da China.  

Nada de "momento Pearl Harbor"

Compare-se isso às centenas de milhões de chineses que não estão no Twitter e sim no Weibo, e a uma liderança em Pequim que é imune à histeria pós-moderna, pré-guerra, fabricada pelo Ocidente. 

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Qualquer um que entenda a cultura chinesa sabe que não haveria um momento "míssil sobre uma sacada de Cabul" sobre o espaço aéreo de Taiwan. Jamais haveria uma reencenação do perene sonho molhado neocon: um "momento Pearl Harbor". Esse, simplesmente, não é o jeito chinês de fazer as coisas. 

No dia seguinte, quando a narcisista Presidenta da Câmara, tão orgulhosa de sua acrobacia,  foi agraciada com a Ordem das Nuvens Auspiciosas por sua promoção das relações bilaterais Estados Unidos-Taiwan, o Chanceler chinês fez um comentário preocupante: a reunificação de Taiwan com a China continental é uma inevitabilidade histórica.  

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É assim que, estrategicamente,  se coloca foco em um jogo de longo prazo.

O que acontecerá em seguida já havia sido telegrafado, meio que disfarçado, em uma matéria do Global Times.  Aqui vão seus dois pontos principais:

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Ponto 1: "A China verá o episódio como um ato de provocação autorizado pelo governo Biden, e não como uma decisão pessoal de Pelosi". 

Foi isso que o Presidente Xi Jinping havia dito pessoalmente ao inquilino ledor de teleprompter da Casa Branca em um tenso telefonema na semana passada. E isso se refere à linha vermelha suprema.

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Xi está agora chegando exatamente à mesma conclusão a que o Presidente Vladimir Putin havia chegado ao início deste ano:  os Estados Unidos "não são capazes de acordos", e não há sentido em esperar que eles respeitem a diplomacia e/ou o direito internacional nas relações internacionais.

O Ponto 2 diz respeito às consequências, refletindo um consenso entre os principais analistas chineses, que espelha o consenso existente no Politburo: "A crise Rússia-Ucrânia fez com que o mundo visse as consequências de encurralar uma grande potência... a China irá acelerar seu processo de reunificação e declarar o fim da dominação dos Estados Unidos  sobre a ordem mundial". 

Um jogo de xadrez, não de damas 

A matriz sinofóbica, como era de se prever, ignorou a reação de Xi ao fato que ocorria no terreno – e nos céus – em Taiwan, acrescido de sua retórica que expunha a "provocação por reacionários americanos" e da "incivilizada campanha imperialista". 

Pode-se ver essa escolha de termos como Xi assumindo o papel do Presidente Mao. Ele talvez tenha razão, mas a retórica é pro forma. O fato crucial é que Xi foi humilhado por  Washington, como também o foi o Partido Comunista da China, em uma grande  desmoralização – algo que na cultura chinesa é imperdoável. E ainda por cima criando uma vitória tática para os Estados Unidos.  

A resposta, portanto, é inevitável, e será no estilo clássico de Sun Tzu: calculada, precisa, dura, de longo prazo e estratégica, não tática. Isso tudo leva tempo, porque Pequim ainda não está preparada em uma série de áreas tecnológicas. Putin teve que esperar anos para que a Rússia agisse de forma decisiva. A hora da China chegará.  

Por enquanto, é que tanto como ocorreu com as relações Rússia- Estados Unidos em fevereiro último, o Rubicão foi cruzado na esfera Estados Unidos-China. 

O preço dos danos colaterais 

O Banco Central do Afeganistão embolsou pífios 40 milhões de dólares em dinheiro, a título de "ajuda humanitária", logo depois do míssil em uma sacada de Cabul.

Então, esse foi o preço da operação Al-Zawahiri, intermediada pela agência de inteligência do Paquistão,  Inteligência Inter-Serviços (IIS), atualmente alinhado com os Estados Unidos. Tão baratinho. 

O drone MQ-9 Reaper que levou os dois Hellfire R9X que mataram  Al-Zawahiri teve que voar em espaço aéreo paquistanês – decolando de uma base americana no Golfo Pérsico, atravessando o Mar da Arábia e voando sobre o Baloquistão para entrar no Afeganistão pelo sul.  Os americanos talvez tenham usado inteligência humana como bônus.Um acordo de 2003, determinando que Islamabad facilitasse os corredores aéreos para voos militares dos Estados Unidos, talvez tenha expirado com o  debacle da retirada americana, mas sempre pode ser reativado.

Ninguém deve esperar uma investigação aprofundada sobre o que, exatamente, o IIS – historicamente muito próximo ao Talibã – entregou a Washington em uma bandeja de prata. 

Negócios escusos

Dica para entender o intrigante telefonema entre o todo-poderoso chefe do estado-maior do exército paquistanês, General Qamar Javed Bajwa, e a Secretária de Estado Adjunta dos Estados Unidos,  Wendy Sherman. Bajwa fazia lobby para que o FMI liberasse o mais cedo possível um empréstimo de importância crucial para o Paquistão, ameaçado de não-pagamento de sua dívida externa. 

Se o deposto ex-primeiro-ministro Imran Khan ainda estivesse no poder, ele jamais teria permitido esse telefonema.  

A trama se complica, já que a casa em um bairro chique onde Al-Zawahiri morava em Cabul é de propriedade de um assessor muito próximo a Sirajuddin Haqqani, chefe da rede "terrorista" (segundo a definição americana) Haqqani e atualmente o Ministro do Interior do Talibã.  É desnecessário dizer que a rede Haqqani sempre foi íntima do IIS.

E então, três meses atrás, vimos o chefe do IIS, o Tenente-General  Nadeem Anjum, encontrar-se com Jake Sullivan, Assessor para Segurança Nacional de Biden – supostamente para recolocar em funcionamento sua antiga máquina conjunta e secreta de contraterrorismo. 

Mais uma vez, a única pergunta gira em torno da "oferta que não dá para recusar" – o que talvez se refira ao alívio para os pagamentos ao FMI. Nessas circunstâncias, Al-Zawahiri não passou de um insignificante dano colateral.

Sun Tzu emprega suas seis lâminas 

Após as cambalhotas da Presidenta Pelosi em Taiwan, os danos colaterais, fatalmente, irão se multiplicar como as lâminas de um míssil R9-X.

O primeiro estágio é o Exército Popular de Libertação (EPL) já ter dado início a exercícios militares ao vivo, com fortes bombardeios disparados em direção ao Estreito de Taiwan  partindo da província Fujian.

Além disso, as primeiras sanções já entraram em vigor contra dois fundos taiwaneses. As exportações de areia natural para Taiwan estão proibidas; a areia é uma commodity essencial para a indústria eletrônica – o que fará girar ainda mais o botão de escala da dor  nos setores de alta tecnologia da economia global.

O CATL chinês, o maior produtor mundial de baterias de células a combustível e de lítio-íon, vem adiando indefinidamente a construção de uma enorme fábrica com 10.000 empregados e custo de 5 bilhões de dólares que produziria baterias para veículos elétricos fabricados em toda a América do Norte, fornecendo para a Tesla e a Ford, entre outras. 

O avanço das manobras Sun Tzu irá se concentrar, essencialmente, em um bloqueio econômico progressivo de Taiwan, na imposição de um fechamento parcial do espaço aéreo (no-fly zone), em severas restrições ao tráfego marítimo, à guerra cibernética e ao Grande Prêmio: infligir dor à economia dos Estados Unidos. 

A Guerra contra a Eurásia 

Para Pequim, jogar o jogo de longo prazo significa a aceleração do processo que envolve uma série de países de toda a Eurásia e mais além passando a conduzir seu comércio de commodities e de produtos industrializados em suas próprias moedas.  Esses países testarão progressivamente um novo sistema que assistirá ao advento de uma cesta de moedas BRICS+/OCX/União Econômica da Eurásia (EAEU) e, em um futuro próximo, uma nova moeda de reserva. 

A escapada da Presidenta foi concomitante ao enterro definitivo do ciclo da "guerra ao terror", que se metastizou na Guerra contra a Eurásia.  

Os Estados Unidos podem,  sem perceber, ter fornecido o último parafuso necessário para turbinar a complexa máquina da parceria estratégica Rússia-China. Isso é tudo que temos que saber sobre a 'capacidade estratégica' da classe dominante da política dos Estados Unidos. E, desta vez, nenhum míssil em uma sacada será capaz de apagar a nova era.   

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