Com uma viagem, Lula colhe mais que Bolsonaro em 4 anos na relação com a China

Lula sabe que, neste momento de mudança no jogo geopolítico, o Brasil deve tirar proveito das contradições, preservando os valores mais positivos da diplomacia

Lula e Xi Jinping em Pequim - 14/04/2023
Lula e Xi Jinping em Pequim - 14/04/2023 (Foto: Ricardo Stuckert/Distribuição via REUTERS)


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A viagem do presidente Lula à China foi de êxito completo, por mais que alguns procurem cabelo em ovo, sugerindo que ao criticar a hegemonia do dólar nas transações internacionais, ou ao reconhecer a soberania da China sobre Taiwan, o presidente brasileiro tenha se arriscado a colher em troca a insatisfação dos Estados Unidos ou a  má vontade do Ocidente. Com uma viagem, Lula colheu muito mais frutos da relação com a poderosa China do que Bolsonaro em seus 4 anos de mandato, em que só fez atrasar as relações bilaterais.

Aos que sugerem ter Lula se afastado da neutralidade global em direção a um maior alinhamento com o eixo China-Rússia, vale recordar que na diplomacia, mais que a retórica, contam os documentos oficiais emitidos. E, neste sentido, a Declaração Conjunta de 49 pontos (contrastando com o lacônico comunicado emitido após o encontro com Biden) não deixa fio desencapado. Nele, os dois países reiteraram “o compromisso com a defesa do direito internacional, inclusive os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas como sua pedra angular indispensável, e com o papel central da ONU no sistema internacional”. Na mesma linha, reconheceram o papel da OMC como reguladora do comércio internacional. Ou seja, tudo dentro dos conformes.

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Para o Brasil, para a diplomacia de resultados de Lula, o que conta são os ganhos que o país terá com o aprofundamento das relações bilaterais, sem exclusão das outras parcerias, seja com os EUA, seja com a União Europeia, sem esquecer a prioridade nas relações com a América Latina, em busca da integração.

E, neste sentido, Lula volta ao Brasil com a cesta cheia.  Os 15 acordos assinados são importantes mas o longo Comunicado Conjunto explicita muitas outras oportunidades de cooperação, que ainda não estão maduras para a assinatura de acordos ou até prescidem deles.

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Um dos principais acordos assinados é o que busca incrementar, mais ainda, o comércio bilateral, assinado por Itamaraty e Fazenda com o ministério do comércio exterior chinês. Em 2022, o Brasil exportou pouco mais de US 10 bilhões para os EUA, cerca de US$ 13 bilhões para a União Europeia e pouco mais de US$  22 bilhões para a China. O acordo busca ampliar ainda mais estes números, mencionando esforços imediatos para remover barreiras, burocracias, abrir canais para as empresas dos dois lados e a adoção de boas práticas regulatórias. Este último ponto se aplica, por exemplo, ao assunto tão excitante no Brasil neste momento, o fim da isenção de impostos para importações de até US$ 50. A isenção existente, apenas para trocas entre pessoas físicas, vem sendo manipulada pelos sites chineses de e-commerce. Não é uma boa prática, deve reconhecer a China. Haddad está certo.

Importantíssimo foi o acordo assinado para o desenvolvimento do CBERS-6, um novo satélite sino-brasileiro que será de grande utilidade no monitoramento ambiental, especialmente na Amazônia.

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A ministra da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, foi talvez a que mais usou a caneta para assinar documentos na viagem, num sinal de que a nova parceria irá muito além da exportação de produtos primários, evoluindo para a cooperação tecnológica e científica. O acordo maior com a pasta de Luciana envolve projetos em nanotecnologia, inteligência artificial, biotecnologia, cidades inteligentes, novos materiais e muitas destas áreas que estão na fronteira do futuro. O Brasil só tem a ganhar recebendo transferências nestas áreas.

Foi também assinado, nesta linha, um acordo específico na área de Tecnologia da Informação, envolvendo todo este mundo virtual/digital que ainda nos assusta com suas possibilidades, mas pautarão a vida das próximas gerações: big data, novos usos do 5-G, do armazenamento em nuvem, algoritmos e aplicações diversas da inteligência artificial. Nisso, a China está muito à nossa frente.

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Não posso falar aqui dos 15 acordos. Deixo de lado alguns que envolvem o desenvolvimento industrial, área em que estamos tão indigentes. Teriam sido assinados por Alckmin, mas como vice-presidente ele precisou ficar aqui.

Destaco um memorando assinado por Haddad, em que os dois países se comprometem com a “boa governança econômica”, considerada de “importância crítica para que os países assegurem o desenvolvimento sustentável”, prometendo cooperação na busca de boas práticas macroeconômicas, finanças e dívidas sustentáveis, com vistas ao bem estar geral, além de cumprir metas do Acordo de Paris com vistas à mudança climática”. Não é isso que os liberais querem de Haddad?

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Destaco, por fim, um acordo de coprodução televisiva, que abrange também a produção de filmes e séries. Esta é uma área que o Brasil sobrevaloriza no exercício do soft power, a expansão de sua influencia no mundo através da difusão da cultura e do bens simbólicos. Tivemos, com a China, o exemplo do sucesso da novela Escrava Isaura, que fez da atriz Lucélia Santos uma personalidade popularíssima naquele país.

Quando eu presidia a EBC, estive na China a convite do governo chinês em 2010. Impressionou-me a potência da TV público-estatal de lá, a CCTV, que é a emissora central, embora existam outras emissoras nas províncias, que também pude conhecer. Assinamos um acordo para coproduções mas não colhi seus frutos. Eu estava a poucos meses do final de meu mandato.

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Agora foi assinado um acordo entre a EBC e a poderosa agência chinesa de notícias Xinhua. Estávamos, naquela época, negociando um acordo para publicação recíproca de notícias entre Xinhua e Agência Brasil. Isso também se perdeu com minha saída (bem como a criação da Agência Latino-Americana de Notícias, parceria com os vizinhos). Agora a cooperação pode ser retomada e produzir bons frutos para a ampliação da difusão de informações relativa aos dois países, e não só entre eles. Isso pode também fortalecer a Agência Brasil, tão debilitada nos tempos bolsonaristas, como tudo na EBC.

Mas, voltando ao balanço da viagem, Lula deve estar voltando bem feliz da China, com a cesta cheia de boas promessas, que seu governo terá que fazer decolar do papel.

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Relativamente à questão da guerra na Ucrânia, o tema aparece na Declaração Conjunta, na afirmação de que os dois presidentes avaliaram que só o diálogo e a negociação podem levar à paz. E que continuarão conversando sobre o assunto. Está de bom tamanho. Lula nunca esperou obter no encontro algo mais que isso. A construção de um grupo de países negociadores é processo mais lento, delicado e demorado.

E relaxem os que estão vendo na viagem um passo além das pernas, um avanço de alinhamento que não seria bom para o Brasil. Lula e o Itamaraty bem sabem que, neste momento de mudança no jogo geopolítico global, o Brasil deve tirar proveito das contradições, preservando os valores mais positivos que a diplomacia brasileira construiu em muitas décadas, e  que resistiram até mesmo ao furor bolsonarista: não ingerência, valorização da paz e dos direitos humanos,  reconhecimento da ONU e das instâncias multilaterais, e, mais recentemente, compromisso com a grave questão ambiental e climática, o que fez a revista Time incluir Lula entre as 100 personalidades mais influentes do mundo.

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