Com dom Paulo, homenagem à democracia

"Como aconteceu tantas vezes na luta contra a ditadura, hoje a tarde a população de São Paulo é chamada a comparecer a Praça da Sé, desta vez para prestar a última homenagem a dom Paulo, lutador exemplar pela democracia e pelos direitos humanos", escreve o articulista Paulo Moreira Leite; "Num país em que as liberdades públicas e direitos civis pareciam sólidas e permanentes há tão pouco tempo, mas foram colocadas em situação de risco e ameaça após a 'encenação, como diz Joaquim Barbosa, que produziu a queda de Dilma Rousseff, o adeus a dom Paulo é uma oportunidade para o país afirmar suas crenças e valores na democracia"

"Como aconteceu tantas vezes na luta contra a ditadura, hoje a tarde a população de São Paulo é chamada a comparecer a Praça da Sé, desta vez para prestar a última homenagem a dom Paulo, lutador exemplar pela democracia e pelos direitos humanos", escreve o articulista Paulo Moreira Leite; "Num país em que as liberdades públicas e direitos civis pareciam sólidas e permanentes há tão pouco tempo, mas foram colocadas em situação de risco e ameaça após a 'encenação, como diz Joaquim Barbosa, que produziu a queda de Dilma Rousseff, o adeus a dom Paulo é uma oportunidade para o país afirmar suas crenças e valores na democracia"
"Como aconteceu tantas vezes na luta contra a ditadura, hoje a tarde a população de São Paulo é chamada a comparecer a Praça da Sé, desta vez para prestar a última homenagem a dom Paulo, lutador exemplar pela democracia e pelos direitos humanos", escreve o articulista Paulo Moreira Leite; "Num país em que as liberdades públicas e direitos civis pareciam sólidas e permanentes há tão pouco tempo, mas foram colocadas em situação de risco e ameaça após a 'encenação, como diz Joaquim Barbosa, que produziu a queda de Dilma Rousseff, o adeus a dom Paulo é uma oportunidade para o país afirmar suas crenças e valores na democracia" (Foto: Paulo Moreira Leite)


✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

  Devemos à socióloga Laís Abramo, hoje na CEPAL, um relato precioso de um momento particular da luta de dom Paulo Evaristo Arns durante o regime militar. 

   O assunto é a assassinato de "Minhoca," apelido de Alexandre Vannchi Leme, aluno de notas brilhantes da Geologia da Universidade de São Paulo, que em março de 1973 morreu assassinado no DOI CODI paulista, Naquele ano Laís encontrava-se no segundo ano  de Ciências Sociais da USP. Vinte e cinco anos depois, em 1998, produziu um artigo de oito páginas , "Histórias para a Memória" publicado tempos atrás pela revista Teoria & Debate. O texto contém um relato de grande utilidade para o entendimento de uma episódio importante da resistência civil ao regime militar, que foi a missa em homenagem a Alexandre realizada na Sé, em 17 de março daquele ano, ponto de partida para várias manifestações que ocorreram depois, contribuindo para o avanço da luta pela democracia.

       Muito mais lembrada e reconhecida, a missa que denunciava o assassinato de Vladimir Herzog também no DOI CODI, ocorreu em 1975, já em outro momento político, quando a ditadura militar sofrera a gigantesca derrota eleitoral de 1974, que marcou o início de seu declínio longo, com avanços e recuos, mas real. Realizada numa situação de defensiva quase total, a missa de 1973  permite entender o papel de dom Paulo na luta por direitos humanos,  que se prolongaria até o final da ditadura militar.

continua após o anúncio

   Em março de 1973 ele deu um passo importante  para superar a condição -- já em si muito relevante -- de uma das principais lideranças da Igreja Católica no país. Recém nomeado Cardeal pelo Papa Paulo VI, responsável por uma arquidiocese como São Paulo, uma das maiores do país, a partir de então dom Paulo se tornou uma liderança de cunho nacional, responsável por decisões com impacto direto sobre a vida de todos os brasileiros, pois sua audiência chegava muito  além da população católica. Menos de dez anos depois de a Igreja ter sido recrutada pelas elites mais reacionárias do país para fornecer a massa de manobra que deu apoio ao golpe de 64, em 1973 dom Paulo liderava um deslizamento em outra direção. Anti comunista convicto em 1964, como a maioria dos prelados de sua geração, na década seguinte ele entrou de peito aberto na luta pela democracia. Num país onde organizações do fascismo católico, como Tradição Família & Propriedade, desfilavam uniformizadas pela rua e tinham boa acolhida nas páginas da grande imprensa, dom Paulo  fazia parte daquelas lideranças religiosas que, hipocritamente, eram condenadas pela cúpula do regime militar porque queriam interferir em assuntos políticos.

       Até em passado recente o Cardeal fora  uma pessoa de confiança da família Civita, dona da editora Abril, responsável por publicações influentes, como Realidade, e que desde 1968 publicava VEJA. Ali, costumava ser chamado para dar opinião em reportagens delicados, com direito a leitura prévia, como recorda Carlos Maranhão em sua biografia de Roberto Civita. Mas isso era passado.

continua após o anúncio

     Em 1971, num encontro tenso com o ditador Emílio Médici, havia denunciado a  tortura de presos políticos.  Também havia publicado "Testemunho de Paz", um dos primeiros documentos importantes da Igeja sobe direitos humanos.

      O homem que desde sua morte provocou a presença milhares de fiéis na Catedral da Sé, para um velório que se prolonga até a tarde de hoje, quando seu corpo será sepultado, assumira outros compromissos e outros engajamento. Em 1973, seria submetido a um teste importante, como recorda o texto de Laís:"Fim da primeira semana de aula, sábado à tarde, choppada nos Barracos. Chega o Bom-Bom, um amigo da Geologia, agitado, assustado: “O Minhoca[1] caiu. Tenho certeza que ele não vai abrir”. Aquilo me assustou.

continua após o anúncio

Meio da semana seguinte: estávamos fazendo, à noite, uma reunião de avaliação da semana dos calouros na casa de uma colega. De repente, agitadíssimos, chegam dois amigos da Geologia: “Mataram o Minhoca”. Tinha acabado de sair a maldita notícia. No rádio, acho.

Perplexidade total. Esse a gente conhecia de perto. Esse não estava na clandestinidade (nas semanas anteriores, vários outras pessoas tinham sido assassinadas pela ditadura, na tortura ou no meio da rua). O que fazer? Lembro, como se fosse hoje, da discussão: difícil, tensa (só como nota de rodapé: tínhamos, todos, 20 anos ou menos). Havia duas posições. A primeira: não podemos fazer nada; fazer alguma coisa agora será dar mais pretexto para que a  repressão caia mais ainda em cima da gente (ela é muito forte, nós somos muito fracos). A segunda: nada disso, não dá, temos que fazer alguma coisa, porque se a gente ficar parado, quieto, aí que eles vão cair em cima cada vez mais. "

continua após o anúncio

 

   O mundo de 1973 era produto de duas derrotas que se somavam e multiplicavam. A de 1964, que derrubou João Goulart e levou as lideranças com poder de mobilização de massa para a prisão e o exílio. A de 1969/1972, que dizimou a juventude que fez a opção pela luta armada, com a consequente destruição de entidades -- como as organizações estudantis -- que haviam servido a resistência no período anterior. Naquela conjuntura, a caçada policial às organizações armadas, como a ALN na qual Minhoca/Alexandre era militante, encontrava-se em fase final. Suas  lideranças importantes tinham sido executadas ou conseguiram fugir para o exterior. 

continua após o anúncio

   Num ambiente próprio para impasses eternos e debates tão sectários como improdutivos, as reuniões para debater o que fazer diante da morte de um estudante que tinha uma vida legal aos milhares de outros alunos da USP se prolongavam por horas a fio, sem uma solução produtiva. Até que, apos uma noite em que tudo parecia sem saída, no dia seguinte ocorreu uma resposta importante, registra Laís.

     

continua após o anúncio

"Logo de manhã a questão foi resolvida. O pessoal da sala do Alexandre,  ao chegar na escola pela manhã, e ao receber a notícia, sem muita análise, sem muita discussão, resolveu interromper as aulas e se declarar em Assembléia Permanente. O conjunto da escola aderiu imediatamente. O que tinha acontecido era realmente inaceitável. O Minhoca era um cara muito querido. A indignação venceu o medo.

Isso deu o rumo para todos nós. Assembléias gerais nas escolas, decretação de luto na Universidade. Era uma 6a feira. Pusemos faixas negras nos prédios em sinal de luto. No dia seguinte todas haviam sido retiradas pela repressão. Aí veio a idéia (que também nos parecia inexequível, num primeiro momento) de pedir para o D. Paulo Evaristo Arns rezar uma missa na Catedral da Sé. Parecia inexequível."

continua após o anúncio

 

 A palavra "inexequível" se compreende por várias razões. No plano político geral, seria uma manifestação pública contra uma ditadura que se mostrava no auge da força. No plano direto, havia uma razão contra dom Paulo.    

   Em fevereiro de 1973, poucas semanas antes da prisão e morte de Minhoca, um comando de organizações armadas havia executado, numa praia do Rio de Janeiro, o delegado Octávio Gonçalves Moreira Junior. Mais conhecido como Octavinho, era um dos homens fortes da máquina de tortura e mortes do regime. Para a maioria dos brasileiros, seu nome nada significativa. No universo da luta armada, era um nome marcado por denúncias e mortes de militantes. Na medida em que o cerco crescia em torno de organizações cada vez menores, em luta cada vez mais impossível pela sobrevivência,  o justiçamento  se tornava um lance frequente de um confronto em desesperados instantes finais.

 

  Dois anos depois de denunciar a tortura para Médici, o regime fazia uma provocação a dom Paulo -- um pedido para que rezasse uma missa em homenagem ao delegado.  Era uma tentativa obvia de desmoralizar sua conhecida atividade por direitos humanos, que já incluia a denuncia de maus tratos a presos comuns e em 1978 envolveu a libertação de um líder místico, Francisco Galdino, encarcerado por oito anos num manicômio porque liderou um inaceitável movimento popular contra a usina de Ilha Solteira, no interior de São Paulo, como recorda o jornalista Ricardo Carvalho no livro O Cardeal e o Repórter.

 

   Dom Paulo jamais aprovou o emprego de violência para fins políticos, em particular contra prisioneiros. Era capaz de empregar argumentos sabiamente religiosos para defender este ponto de vista, como escreveu no prefácio do livro Brasil Nunca Mais: "o próprio Cristo, que passou pela Terra fazendo o bem, foi perseguido, toturado e morto. Legou-nos a missão de trabalhar pelo Reino de Deus, que consiste na Justiça, verdade, liberdade e amor."

     Se  sabia o que não fazer, e recusou-se a abençoar um torturador, dom Paulo levou um tempo para dar o passo seguinte. "As negociações duraram vários dias," conta Laís. "Até que o D. Paulo, num imenso ato de coragem e dignidade, aceitou rezar a missa. Que foi celebrada na sexta-feira,  pleno 30 de março, um dia antes do 9 aniversário do Golpe de 1964."

 

     Não é preciso forçar a imaginação para encontrar semelhanças entre o país de dezembro de 2016 e aquele de março de 1973. Mais de quarenta anos se passaram, com todas as mudanças correspondentes. O país de 1973 iniciava uma luta que se mostrou vitoriosa contra uma ditadura instalada nove anos. O Brasil de 2016 busca um caminho para evitar a consolidação de um estado de exceção. São situações diferentes embora a questão democrática esteja presente. E é curioso registar que a personalidade de Dom Paulo Evaristo Arns, cuja história se confundiu em tantos momentos com a história do país, esteja presente em todas elas.



 

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.

Comentários

Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247

continua após o anúncio

Ao vivo na TV 247

Cortes 247