Classe média tem que lutar contra seu “reaça” interior

Sempre entendi Hildegard como uma pessoa de esquerda. Sobretudo em sua luta sublime contra as chagas deixadas pela ditadura militar. Meu Deus, que dor! Como é possível que uma pessoa de esquerda diga uma coisa dessas?



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Surgiu uma polêmica desagradável – e surpreendente – envolvendo alguém por quem sempre tive simpatia e respeito. Essa pessoa, ao menos publicamente, sempre manifestou pontos de vista humanistas, progressistas, elogiáveis. De repente, porém, deu declarações que chocaram a muitos. Declarações inacreditáveis, vindo de quem vieram.

Então pensei: e se essa pessoa não fosse de um campo político-ideológico com o qual sempre mantive afinidade? Resposta imediata: eu cairia de pau.

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Mas não queria falar dessa pessoa. Não a conheço pessoalmente, mas conheço digitalmente e com ela sempre mantive comunhão em grande parte de seus pontos de vista, ainda que longe de concordar com tudo o que diz.

Então você é um hipócrita, digo a mim mesmo.

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Pergunto-me, buscando escapatória de abordar o tema: mas não devo solidariedade a alguém que sempre se manifestou publicamente de forma decente e, sabe-se lá por que, de repente disse uma legítima barbaridade?

Respondo-me: silêncio por conta de sua subjetividade em uma questão pública não é solidariedade, é cumplicidade e, de novo, hipocrisia.

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Fui derrotado no tribunal da consciência. Por unanimidade. Eis que tenho que dar uma opinião.

A colunista social e blogueira Hildegard Angel pregou discriminação de pobres em praias da Zona Sul carioca, em seu blog. Chegou a propor que retirem os ônibus que levam pobres à região. O motivo? Arrastões que têm sido cometidos nas praias dos bairros endinheirados.

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Mas não ficou só nisso. Ela propôs, também, que seja cobrada entrada dos frequentadores de praias como Copacabana, Ipanema etc., em uma defesa clara de discriminação social e, por que não dizer?, étnica, pois todos sabem que a pobreza, no Brasil, tem cor da pele. Inclusive a pobreza que vive longe das praias cariocas.

Sempre entendi Hildegard como uma pessoa de esquerda. Sobretudo em sua luta sublime contra as chagas deixadas pela ditadura militar. Meu Deus, que dor! Como é possível que uma pessoa de esquerda diga uma coisa dessas?

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A tese equivocada da colunista e blogueira, porém, em vez de desencadear o bom e velho linchamento na internet poderia servir para que a classe média que se diz "de esquerda" reflita sobre quanto do que defende no cotidiano, em relação ao que é público, norteia sua vida privada.

É bem possível que Hildegard ou alguém de sua relação tenha tido problema com arrastão em alguma praia "nobre" do Rio. Um verdadeiro teste de coerência político-ideológica. A tendência natural humana é a de que o instinto de autopreservação tome a frente independentemente de ideologias.

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Faça o teste da natureza humana usando um bebê. Ele está em um cercadinho cheio de brinquedos. Está brincando com um em particular. Pegue outro, com o qual ele não está brincando, e diga "Olha, que lindo!". Como pai de quatro filhos e avô de três netas, afirmo que a quase totalidade das crianças vai querer pegar de você o brinquedo que não estava usando.

É a natureza dos seres vivos. Somos egoístas como qualquer animal, na eterna busca pela supremacia na cadeia alimentar.

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A civilização veio para mudar isso, ainda que com resultados questionáveis. É claro que os animais não têm conceitos como direitos animais, assim como temos o de direitos humanos. As leis e regras não escritas de convivência social buscam nos separar dos animais. Porém, animais espertos que assumiram o topo da cadeia alimentar, inventamos um meio de burlar a civilização formulando teorias lógicas para o que não passa de egoísmo, exclusivismo, o que não deixa de ser instinto de autopreservação, mesmo que seja do próprio conforto.

Por que todos os pobres das Zonas Norte e Oeste do Rio têm que pagar por alguns garotos pobres e desorientados que vivem nessas regiões e acabam indo à Zona Sul roubar quem tem o que ser roubado?

O engraçado é que mesmo quem, por ser de esquerda, deveria entender a razão de tantos jovens pobres se entregarem ao crime, acaba agindo como qualquer "reaça" assumido, defensor da ditadura militar, do fim dos programas sociais etc.

Compreender a gravidade da tese que Hildegard difundiu, porém, não significa que linchá-la publicamente vai resolver um mal ideológico que não é exclusividade dela, e do qual todos correm o risco de padecer.

Confesso que, quando jovem, flagrei-me na iminência de querer que meu conforto se sobrepusesse ao direito inalienável de qualquer cidadão brasileiro de frequentar qualquer espaço público em qualquer parte do território nacional.

Aliás, quando era (muito) mais jovem cheguei a flertar com esse tipo de ideia. Apesar de letrado, era muito ignorante em termos de entendimento dos direitos civis e humanos. Só a busca pelo conhecimento mostrou-me que muito do que acreditava ser "meu direito" não passava de exclusivismo e arrogância.

Há quase três décadas, porém, adotei o costume de sempre refletir muito sobre os "meus direitos" e sobre os direitos da coletividade. Já escapei por pouco de cometer opiniões parecidas com a de Hildegard. Entretanto, tive uma vantagem que ela não teve: vivi do lado de lá.

Nasci e cresci em uma família de classe média alta de paulistanos. Porém, a família foi morrendo até que, quando conheci minha atual esposa, lá pelos 20 anos, já não restava praticamente nada da família e da herança. Sou oriundo da classe média alta decadente de São Paulo, que ficou pobre.

Início dos anos 1980. Agora casado, uma filha, fui trabalhar como estoquista, ganhando um salário de fome, passando dificuldades que poucos entre os que (à diferença de mim) nasceram pobres, passaram igual.

Um jovem que concluiu o ensino fundamental e médio em colégios paulistanos como Dante Aligheri e São Luis acabou indo morar com a jovem esposa e a primeira filha em um cortiço no qual outras dez famílias (todas negras) dividiam o mesmo banheiro e a mesma pia para lavar louça.

Por alguns anos, ia trabalhar a pé todo dia – naquele tempo, não havia "vale transporte". Eram sete quilômetros para ir, sete para voltar – fizesse chuva ou sol. E, como se não bastasse, eu e a esposa chegamos a passar fome. Eu, particularmente, cheguei a ficar 3 dias sem comer.

Quem nunca provou desse cálice amargo, não pode entender completamente o que é a pobreza. Eu, apesar de ter nascido em "berço de ouro", neto de um ex-diretor da Mercedes Benz, provei desse cálice.

A base educacional que tive, porém, fez-me ascender profissional e economicamente. Nunca voltei a ter muito dinheiro, mas sempre ganhei mais do que o suficiente para dar uma boa vida a mulher e quatro filhos, três dos quais sempre estudaram em renomadas escolas católicas (portanto, particulares) de São Paulo.

Talvez por isso, por aprender, na prática, o que é viver "do outro lado", nunca mais tive tanta dificuldade para entender a questão social no país quanto tem quem não conhece esse "outro lado".

Quero terminar este texto com uma defesa de Hildegard. Conheço muita gente que se diz "de esquerda" e que, em privado, não resiste muito a essa praga que infecta a alma das classes alta e média brasileiras, o conceito de "exclusividade", que, inclusive, é adotado sem pudor na propaganda para vender produtos e serviços aos endinheirados.

Apesar de discordar de cada palavra que Hildegard escreveu naquele texto que gerou essa polêmica, entendo que ela se deu a um "sincericídio" do qual boa parte da esquerda de classe média ou alta escapa por esperteza, nunca por convicção.

Concluo manifestando esperança em que Hildegard entenda quanto errou e, assim, seja capaz de produzir recuo daquela opinião tão triste. Até para não ser contribuinte de preconceitos que este país precisa eliminar para que, um dia, não tenhamos mais jovens pobres destruindo suas vidas ao roubarem trocados para comprar tênis "de marca".

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