Ciro, ou contradições que incomodam

O Brasil não suportaria mais um governo de traição na economia política. Estamos sob o desafio de superar décadas de atraso e saltar para um futuro de imensas potencialidades que exigem verdadeiras revoluções nas áreas ambiental, energética, urbana, estatal e do mercado de trabalho. Sem política fiscal-monetária consistente, isso não será possível.



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Amigos me advertiram que fui injusto com a crítica ao Projeto Nacional de Ciro Gomes porque ele não seria um fiscalista ortodoxo, conforme apontei. Entretanto, não fiz nada além de encontrar em seu livro a confirmação dessa opinião. Antes, uma anotação: a questão que levanto não é perfunctória. Não considero a política fiscal-monetária um elemento que se aplica externamente à política econômica. No meu entender, ela está no próprio centro dela, e a define como regressiva ou progressista.

Sou um grande admirador das políticas sociais de Lula, mas considero que a política fiscal-monetária que presidiu, sob controle de Henrique Meirelles e de seus ministros da Fazenda, foi o elemento central do desastre econômico brasileiro nos governos do PT, depois de 2010. Não gostaria de ver o mesmo se repetir em 2023, seja sob o governo Lula, seja no governo de Ciro. Por isso, acho que essa discussão deve ser travada agora, sem subterfúgios, clara e honestamente. Ciro a trouxe à luz. É um mérito. 

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O problema não é tanto as afirmações do ex-governador, mas suas contradições. Ele diz, com total razão, na introdução do livro: “A única opção moralmente responsável nesse cenário de incerteza é nos basearmos no melhor que a ciência tem a oferecer para tomar nossas decisões. E, segundo ela, precisamos radicalizar a quarentena e o isolamento social, com testagem maciça. 

Paralelamente, somente a oferta monetária para garantir a liquidez, com poderosos pacotes fiscais para financiar a renda das pessoas e das empresas, pode salvar nossa economia e, portanto, nosso povo.” Não vejo melhor conselho do que este a um presidente da República no momento dramático que atravessamos, e que será provavelmente os momentos iniciais do próximo presidente. Entretanto, quando se trata de apontar os rumos de uma política fiscal-monetária normal para depois da crise, diz Ciro, pela boca de Mangabeira Unger: “Ciro não fica atrás de qualquer um na defesa do realismo fiscal, que ele entende, junto com a defesa, como parte do escudo de nossa rebeldia nacional. São ideias credenciadas por atos: ninguém que tenha atuado no primeiro plano da política brasileira se esmerou mais em assegurar superávits fiscais. Não o fez para atender aos mercados financeiros, e sim para que o país não precise se ajoelhar diante dos interesses e preconceitos deles.” Realismo fiscal é um eufemismo para políticas fiscal-monetárias restritivas, do tipo que exige superávits orçamentários recorrentes e orçamentos públicos equilibrados. Mas Mangabeira continua: “(Ciro) sabe que realismo fiscal exige sacrifício e que, por isso mesmo, só se legitima e se mantém se vier no bojo de mudança de rumo que ofereça oportunidade e capacitação para muitos. Ciro reconhece que a classe média terá que ajudar a pagar a conta junto com os ricos, mas insiste em medidas como a tributação das grandes heranças e doações familiares e dos lucros e dividendos para que os endinheirados tenham que arcar com parte maior do sacrifício nacional. 

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O compromisso com o realismo fiscal dá a Ciro autoridade para combater, como fez ao longo de sua trajetória, uma pseudo-ortodoxia econômica que usa a política monetária para sacrificar a produção ao rentismo financeiro e a política cambial, para disfarçar o empobrecimento do país.” Há muitos conceitos corretos aí, mas por que as classes médias terão de ajudar os ricos a pagar a conta do realismo fiscal? Elas já não estão suficientemente sacrificadas pela política econômica dos últimos anos? Certo que lucros, dividendos e heranças terão de pagar mais impostos, mas isso não tem efeito relevante sobre a carga fiscal total. Seus efeitos mais importantes se aplicariam à desconcentração e distribuição da renda nacional. Aliás, o que se entende por realismo fiscal? Uma política fiscal-monetária consistente não é aquela que possibilita justamente uma carga tributária mais leve para que a sociedade, principalmente os mais pobres, financiem o desenvolvimento? Não estou insistindo numa querela irrelevante.

 Para mim, funções inarredáveis do Estado são a defesa externa e a emissão de moeda. Nesses campos, ele tem monopólio absoluto. O próprio desenvolvimento econômico depende da emissão contínua de moeda. Sem isso, não há crescimento da produção de bens e serviços. Portanto, se insisto no tema é porque há uma necessidade inarredável de explicar à opinião pública o que se entende por política monetária. Não é algo fácil de ser compreendido pelo senso comum. Vi uma entrevista de Ciro na TV com um grupo de uns dez jornalistas onde nenhum deles demonstrava o mínimo conhecimento do tema. Insistiam na estupidez do chamado “tripé macroeconômico”, que foi o fetiche inventado pelos neoliberais, sobretudo agências de risco, e engolido por muitos políticos e pela mídia ignorante, para fazer curvar a política econômica brasileira, em todos os governos desde FHC, aos ditames dos financistas. Ciro deu um banho naqueles jornalistas. 

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Minha esperança é que, saindo da caixa preta onde o meteu a política fiscal-monetária ortodoxa, ele use seu poder de comunicação para forçar Lula a superar os traumas pessoais que o prendem ao passado de injustiças, e o exponha ao debate de um projeto nacional desenvolvimentista.

 O Brasil não suportaria mais um governo de traição na economia política. Estamos sob o desafio de superar décadas de atraso e saltar para um futuro de imensas potencialidades que exigem verdadeiras revoluções nas áreas ambiental, energética, urbana, estatal e do mercado de trabalho. Sem política fiscal-monetária consistente, isso não será possível.

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