Cinema: Visita ao inimigo

Marcelo Pedroso lança, primeiro no Nordeste, a versão remontada de “Por Trás da Linha de Escudos”, seu polêmico documentário sobre a tropa de choque de Recife

(Foto: Divulgação)


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Em 2017, quando Marcelo Pedroso finalizou Por Trás da Linha de Escudos, o Brasil lambia as feridas do golpe de 2016, bradava “Fora Temer” e vivia um período de violência político-policial acirrada. A polícia estava sob escrutínio do cinema em filmes como Auto de Resistência, de Natasha Neri e Lula Carvalho, Operações de Garantia da Lei e da Ordem, de Julia Murat, e Rio do Medo, de Ernesto Rodrigues. Todos tinham como alvo as forças policiais que eram usadas como braço armado do estado para reprimir manifestantes e ocupantes. 

Era fácil entender, portanto, que a proposta de Marcelo Pedroso não fosse compreendida no que ela tinha de mais arriscado. Marcelo queria atravessar a linha de escudos, aquela fronteira que delimita os campos dos “inimigos” na ação policial, e auscultar a mentalidade de soldados e soldadas da tropa de choque de Recife. 

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Dois anos antes, em 2014, ele estivera na “turba” (jargão policial), isto é na resistência à desocupação do Cais José Estelita. Não se considerava propriamente um inimigo, mas “uma parte protegida”, composta de cineastas e jornalistas. Inimigos eram os sem teto e os que vinham apoiá-los na luta contra um grande empreendimento imobiliário que os desalojaria do local. Já em 2016, lá estava ele abrindo câmera e microfone para os policiais expressarem seus pontos de vista sobre os confrontos e sobre seu ofício. 

A primeira versão de Por Trás da Linha de Escudos passou em dois festivais e foi retirada de circulação após uma avalanche de críticas à forma como o diretor conduzira sua tentativa de aproximação com a tropa. 

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Filmar o inimigo é sempre uma questão crucial do documentário, como levantou o teórico Jean-Louis Comolli em Ver e Poder. Para Comolli, denunciar e descrever não são suficientes para melhor mostrar o inimigo. É preciso tentar compreender o outro e as motivações por trás de suas ações, em vez de simplesmente demonizá-lo. Ficar ao lado do inimigo (mas não do seu lado) seria fundamental para melhor conhecê-lo e melhor combatê-lo.

Foi o que Pedroso tentou. Como dizia na época, quis “abrir um diálogo político e respeitoso com as pessoas, não buscando julgar ninguém”. Seu modelo era S21: A Máquina de Morte do Khmer Vermelho, em que o cambojano Rithy Panh  mobilizou carrascos que promoveram um genocídio no país, na década de 70, para estimular um exame de consciências daquelas pessoas. 

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Pedroso entrevistou soldados e oficiais, que elogiavam “o trabalho árduo e muito belo” da tropa, como qualificou um tenente-coronel; ouviu o depoimento emocionado de uma soldada a respeito das horas de combate; presenciou uma aula sobre gás lacrimogêneo e participou de treinamentos de resistência ao gás; gravou momentos de lazer e ações da tropa no controle de confusões em estádio, contendo rebelião em presídio e, claro, reprimindo manifestações de rua. 

Deixou sempre clara sua posição de oponente, na tentativa de criar uma relação de transparência. Sorria às vezes, simulando compreensão, e usou um colete de policial em cenas nas quais acompanhava ações.

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As reações negativas em 2017 o levaram a remontar o filme para a versão que agora chega aos cinemas, primeiramente em Recife, Fortaleza e Maceió. Reduziu muitas cenas de observação e ampliou as inserções de atos públicos que deixavam clara a brutalidade do “Choque” (este, aliás, era o título do projeto inicial de Pedroso). Mas a principal mudança é a inclusão de uma narração em primeira pessoa, na forma de uma carta ao batalhão em tom acusatório, em que o diretor expõe suas intenções e comenta extensivamente suas conclusões. A principal dessas é o fracasso em acessar as pessoas por baixo das fardas. 

De fato, o que se ouve é fruto de uma couraça com a qual os/as integrantes da tropa se protegem de sua eventual consciência cidadã. No ataque a manifestantes, o imperativo da missão cumprida sobrepuja qualquer laivo de solidariedade que possa identificá-los com a população e a classe à qual pertencem. O compromisso militarista os/as obriga a superar ou dissimular qualquer hesitação em cumprir a missão, especialmente quando se referem a isso diante da câmera de um eventual “inimigo”. 

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Da mesma forma, o cineasta se policia o tempo todo quanto aos limites de sua aproximação. Marcelo Pedroso confiou nessa medida quando apresentou o filme pela primeira vez. Criticado, guardou-o por seis longos anos. Para trazê-lo de volta, está pagando um preço: usar sua voz para explicar algo que deveria ser intuído pelo espectador.

Explicar inclusive o sentido de suas alegorias com os ativistas fantasiados de policiais e protegidos por escudos decorados com parte da bandeira brasileira. Bandeira que já havia sido hasteada no alegórico Brasil S.A., símbolo a ser agenciado no combate às hostes do estado militar-capitalista. 

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