Cinema: O petróleo é delas
Provocativo e magistralmente filmado, "Mato Seco em Chamas" expõe as contradições do Brasil com uma eletricidade e uma legitimidade dramática raramente vistas
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Das campanhas "O petróleo é nosso" na Era Vargas à descoberta do pré-sal na Era Lula, o chamado ouro negro sempre respresentou um sonho de autonomia e emancipação para a economia brasileira. Por isso sempre foi tratado como assunto de estado, encampado pela Petrobras, seja através do monopólio estatal, seja pelo controle majoritário da cadeia produtiva do combustível.
No cerne de Mato Seco em Chamas está uma visão subversiva desse domínio. O filme de Adirley Queirós e Joana Pimenta gira em torno de uma gangue feminina que refina petróleo clandestinamente a partir de um poço artesanal e vende a gasolina aos motoboys de Brasília por preços inferiores ao mercado em troca de comissões sobre as entregas que eles fazem. A gasolina, assim, figura claramente como um sucedâneo do tráfico de drogas.
Não à toa, a porção documental desse filme híbrido se ancora numa megaoperação da polícia do Distrito Federal em 2013, que levou à prisão milhares de traficantes. Ao que tudo indica, um desses foi Léa Alves da Silva, atriz principal de Mato Seco em Chamas juntamente com sua meio-irmã Joana d'Arc, vulga Shitara. As filmagens já haviam começado com Joana em 2018 enquanto Léa ainda estava na prisão. Quando saiu, ela foi incorporada ao elenco e catalisou a energia propulsora do filme.
Léa e Joana incorporam um ideal transgressivo e matriarcal nos papéis das líderes gasolineiras. Elas atuam num tempo ligeiramente vago, na verdade cíclico, mas que passa pelas eleições de 2018. Sua postura de corpos periféricos desafia o ultraconservadorismo que se anunciava naquele momento. Mulherenga, Léa vive num entorno de lésbicas ostensivas e, enquanto está fora da cadeia, trabalha para ajudar quem está dentro.
O cenário político de Mato Seco em Chamas se completa com a candidatura de Andreia Vieira a deputada distrital na favela Sol Nascente por um certo Partido do Povo Preso. A campanha de Andreia pelas ruas da Ceilândia contrasta com uma manifestação de fascistas bolsonaristas brancos de classe média no Plano Piloto. A contraposição lembra, em chave naturalmente diferente, a mesma ocorrida entre a campanha do candidato popular ficcional Dildu e uma carreata real de Dilma Rousseff em A Cidade é uma Só?, de Adirley Queirós.
Andreia contesta o toque de recolher em vigor na favela e promete liberar o trabalho dos mototáxis. São tópicos que ecoam questões reais da periferia de Brasília, ambiente que inunda os filmes de Adirley. O agenciamento das ruas e becos da Ceilândia provoca uma experiência imersiva no espectador. Para isso contribui o extraordinário trabalho sonoro que abrange o ronco das motocicletas, o perene latido dos cães, trovões, fogos de artifício e pérolas do cancioneiro periférico.
A parceria com a portuguesa Joana Pimenta na direção e na excepcional fotografia demonstra uma supreendente afinação – antecipada, aliás, pelo trabalho de Joana na direção de fotografia de Era uma Vez Brasília. De filme a filme, o visual se sofistica pela luz e os enquadramentos, ao passo que a cenografia permanece na estética de ferro velho e geringonça típica dos longas anteriores. Há mesmo uma ênfase na montagem e demolição de artefatos, seja na extração de petróleo, seja na manipulação de veículos. Vejo ali uma metáfora para a própria produção cinematográfica periférica, dependente da improvisação e das gambiarras para sobreviver.
É bem verdade que Mato Seco em Chamas não padece mais da penúria de recursos dos primeiros filmes de Adirley. Trata-se de uma confortável coprodução com a sólida Terratreme portuguesa. O processo de criação, contudo, caminhou na corda bamba da ausência de roteiro e na constante reinvenção do argumento conforme rumavam os acontecimentos intra e extra-filme. A certa altura, por exemplo, Shitara interrompe a ficção para comentar o novo aprisionamento de Léa em meio às filmagens.
As conversas íntimas entre as meio-irmãs são o fio-terra documental de Mato Seco em Chamas. Ali se desvela a realidade das duas atrizes num movimento pendular entre o crime e a resistência, o impulso libertário e as amarras da família e do afeto.
Nada é estático ou estereotipado nesse "faroeste imaginário" (como cita a canção final). Andreia, por exemplo, é candidata progressista e frequentadora de cultos evangélicos. Léa aparece cantando para Jesus e cultuando seu revólver. As motociatas proletárias da periferia antecipam as contrapartes autoritárias que viriam no governo fascista-militarista pouco depois. Numa sequência das mais inesperadas e desconcertantes, um camburão policial se move ao som "religioso" de A Montanha, de Roberto Carlos.
Enfim, as contradições do Brasil atual fervem na tela com uma eletricidade e uma legitimidade dramática raramente vistas no nosso cinema. Provocativo e magistralmente filmado, Mato Seco em Chamas se junta a Bacurau como retrato vigoroso de um país em vias de conturbação – e onde nada é preto no branco. Que venha agora Grande Sertão: Quebradas, o próximo projeto de Adirely Queirós.
O trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=vd-ormd2oQI
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