Cinema de opinião
Pequeno Segredo, que não figurou nem entre os pré-selecionados ao Oscar, recebeu R$ 4 milhões da Lei do Audiovisual para ser realizado, além de R$ 6 milhões de outras fontes, segundo os dados oficiais e disponíveis na internet. Já Aquarius teve R$ 3,4 milhões, valor bem menor
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O Correio Popular é um jornal plural que dá espaço a distintas correntes políticas e de opinião. O Correio do Leitor é um local adequado para essas manifestações, frequentado por mim em uma centena de vezes. Minha carta elogiando a postura da atriz Meryl Streep, no entanto, gerou um comentário contrário que usou o dobro do espaço destinado ao meu texto. O missivista, dentro de seu direito de usar o ambiente democrático que o Correio franqueia, não mencionou meu nome e também não cito o dele, mas achei curioso que ele tenha inferido que meu elogio à atriz tenha sido um paralelo apenas à manifestação contra o golpe, feita pelo elenco do filme brasileiro Aquarius em Cannes. Não, foi um apoio a todas as manifestações que defendem a cultura e a democracia, ainda que no meu texto não estivessem escritas essas palavras.
Inusitado foi o missivista ter forjado uma correlação entre a premiação de um filme em Cannes ou no Globo de Ouro com suas chances de ser indicado ao Oscar. Na minha carta eu nem deixei implícito que o filme Aquarius havia sido preterido devido a questões políticas, como é, de qualquer forma, bem sabido e documentado. Na sequência, dias depois, outra leitora repete a opinião do missivista e considera a minha uma vergonha, mesmo eu não tendo escrito o que ali se afirma. Aliás, o que o missivista e a outra leitora não fazem é construir sua opinião sobre fontes de pensamento múltiplo e não restrita a uma única corrente. O missivista faz isso, provavelmente, por sua atuação como militar, já que indica em sua carta ter tido essa profissão. Como cientista, mesmo que da área de exatas, construo minhas opiniões por meio de vivências, buscas e comparações de dados e informações, não possuindo uma posição pré-definida ou que não possa ser modificada à luz dos fatos. Nesta época pós-verdade, um boato possui mais credibilidade que a verdade factual e é necessário refinarmos nossas fontes.
Assim, o missivista teria verificado que os filmes brasileiros que chegaram a ser indicados ao Oscar – aqueles que aparecem na cerimônia de premiação – não ganharam outros prêmios importantes, com a exceção de Central do Brasil que, além da indicação, venceu o Globo de Ouro e pelo qual também Fernanda Montenegro foi indicada ao Oscar de melhor atriz em 1999. É claro, O Pagador de Promessas foi outro indicado ao Oscar vitorioso em Cannes, mas isso há mais de 50 anos. Das mais recentes produções que tiveram destaque e foram indicados ou pré-indicados ao Oscar, como O Quatrilho, O Que é Isso, Companheiro? e O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, nenhuma ganhou Cannes ou o Globo de Ouro. Mas estavam lá, disputando com produções do resto do mundo. Isso acontece porque o júri de cada um desses eventos (Oscar, Cannes, Globo de Ouro) é totalmente distinto e os votos de um certame não necessariamente serão repetidos em outro. No entanto, se Aquarius teve qualidade para estar entre os indicados ao Globo de Ouro e em Cannes, o que o escolhido Pequeno Segredo nem chegou a ter, seria a melhor opção para representar o Brasil no Oscar, não fosse a forte questão política envolvida.
O missivista talvez seja saudosista do tempo em que bastava a opinião única de quem estava no poder – poder esse roubado do povo por um golpe sujo –, mas são diversas as opiniões e não é a sua ou a minha que deve prevalecer e sim a da maioria. Democracia é um conceito difícil de ser entendido, mesmo quando nos é tirada à surdina por meio de um golpe engendrado no parlamento.
Quanto ao dinheiro captado para fazer o filme, trazido à baila pelo missivista, Pequeno Segredo, que não figurou nem entre os pré-selecionados ao Oscar, recebeu R$ 4 milhões da Lei do Audiovisual para ser realizado, além de R$ 6 milhões de outras fontes, segundo os dados oficiais e disponíveis na internet. Já Aquarius teve R$ 3,4 milhões, valor bem menor, mas ainda superior ao relatado pelo missivista, pois inclui o que foi captado pela Lei Rouanet (R$ 1,95 milhões dos R$ 2,9 milhões autorizados) e por outras fontes. Se captar um recurso público e ter opinião política significam mau uso do dinheiro, todos os militares que recebiam seu soldo e estavam na ativa quando do regime militar poderiam ser considerados corruptos, pois viveram às custas de uma opinião política (ainda que não explícita) praticada por meio da deposição de um presidente legitimamente eleito e pelo uso da força bruta para se manter nessa condição por mais de duas décadas. Certo é que muitos estavam apenas cumprindo ordens e não tinham a dimensão das ações em que estavam envolvidos. Desta forma, nem todos os artistas são revolucionários e nem todo militar é corrupto. Mas todos podem, ainda, opinar.
Adilson Roberto Gonçalves é pesquisador na Unesp-Rio Claro
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