Cinema: Balada das dependências

"All the Beauty and the Bloodshed", um dos favoritos ao Oscar de documentário, desvenda a trajetória e as motivações de Nan Goldin

"All the Beauty and the Bloodshed"
"All the Beauty and the Bloodshed" (Foto: Divulgação)


✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Leão de Ouro no Festival de Veneza e indicado ao Oscar de documentário, All the Beauty and the Bloodshed ("Toda a beleza e o banho de sangue", em tradução literal) faz movimentos alternados entre a intimidade da célebre fotógrafa Nan(cy) Goldin e seu ativismo contra a bilionária família Sackler, fabricante de remédios como Valium e Oxycontin.

Receitado maciçamente contra processos dolorosos, Oxycontin é acusado de ter criado uma legião de dependentes e provocado a morte (por parada cardíaca) de cerca de meio milhão de pessoas nos EUA. O medicamento continua sendo vendido, inclusive no Brasil, mas os Sackler foram alvejados, ao menos moralmente, pela ação da P.A.I.N. (Prescription Addiction Intervention Now), campanha liderada por Nan Goldin para fazer frente à chamada crise dos opióides.  

continua após o anúncio

Os protestos do grupo no interior ou à frente de museus como o Metropolitan e o Guggenheim, em Nova York, e o Louvre de Paris reivindicavam que as instituições parassem de aceitar as doações milionárias com que os Sackler procuravam limpar sua reputação e retirassem o nome da família da alas batizadas em troca da filantropia. O filme traz registros dessas performances, nas quais Nan investia sua fama e a própria circunstância de ter suas obras nas respectivas coleções.

Fundada em 2017, a P.A.I.N. milita igualmente na redução de danos advindos de overdose não só de remédios, mas também de drogas. No retrospecto da carreira da fotógrafa, consta ainda seu ativismo em prol da humanização das vítimas da Aids, objeto de uma grande exposição curada por ela e que teve apoio negado pelo National Endowment for the Arts. Muitos de seus maiores amigos morreram de Aids – aqui onde entra a outra faceta do filme de Laura Poitras (Citizen Four, Risk).

continua após o anúncio

Com sua voz arrastada e macambúzia, mas cheia da confiança de quem sabe que será ouvida mesmo se falar daquele jeito, Nan repassa esquinas cruciais de sua vida que cunharam sua visão de artista. A começar pela história da irmã Bárbara, que se jogou debaixo de um trem aos 19 anos depois de ser estigmatizada como doente mental. Nan por pouco não seguiu o mesmo caminho. Também se encontrou bissexual, foi expulsa de casa e de colégios, passou por orfanato e por clínicas de desintoxicação, roubou em lojas (façanha de que se orgulha até hoje), trabalhou num bordel (episódio que revela pela primeira vez no filme), levou vida muito louca no Bowery nova-iorquino dos anos 1980. Salvou-se quando conheceu uma Polaroid e o amigo andrógino David Armstrong. 

Salvou-se não no sentido de abandonar, mas de dar um sentido a tudo aquilo. A fotografia e o convívio com drag queens, gays e transexuais moldaram sua personalidade e carreira. Laura Poitras introduz no filme uma fina seleção de suas fotos e slideshows, repletos de casais excêntricos, gente chapada, portraits melancólicos e autorretratos durante relações sexuais. No fundo dessas escolhas e dessa estética está o quadro pessoal da fotógrafa, com suas múltiplas dependências: de Oxycontin, de drogas, de sexo. 

continua após o anúncio

Numa leitura um tanto redutora, Nan parece atribuir a seus pais – especialmente à mãe – a culpa pela tragédia da irmã e, por dedutível extensão, das suas próprias adversidades. A construção narrativa do filme, pelo menos, leva a essa conclusão. De resto, All the Beauty and the Bloodshed é um documentário hard, desprovido de edulcorantes musicais – as canções foram sugeridas pela própria Nan – e cadenciado principalmente pelo relato taciturno da fotógrafa. A acareação direta entre Nan e membros da família Sackler numa audiência online é um momento culminante, mas afinal um pouco frustrante.

De qualquer forma, o filme desvenda com eficiência a trajetória e as motivações de uma das artistas mais corajosas do nosso tempo. Para Nan Goldin, fotografar é proteger-se do mundo, espiritualizar o sexo e confundir histórias com memórias. 

continua após o anúncio

>> All the Beauty and the Bloodshed ainda não foi lançado comercialmente no Brasil.

Leiam minhas resenhas dos outros indicados ao Oscar de longa documentário:

continua após o anúncio

A House Made of Splinters

Navalny

continua após o anúncio

Tudo o que Respira

Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft

continua após o anúncio

Trailer sem legendas:

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.

Comentários

Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247

continua após o anúncio

Ao vivo na TV 247

Cortes 247