Ciência x charlatanismo: laboratório patrocina associação de médicos que defende Kit Covid e vê faturamento disparar
Comunidades científicas se posicionam contra farsa do tratamento precoce e fecham o cerco a profissionais como Paolo Zanotto, num momento em que vêm à tona informações sobre quem ganhou dinheiro com a farsa da cloroquina e ivermectina
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A Congregação da Faculdade de Medicina da USP aprovou moção de apoio à representação que o médico Bruno Caramelli apresentou ao Ministério Público Federal (MPF) para que investigue o Conselho Federal de Medicina (CFM) por conta da defesa de remédios ineficazes contra a covid-19.
A manifestação, de 7 de julho, ocorreu alguns dias depois da Congregação do Instituto de Ciências Biomédicas da USP também se posicionar contra o chamado "Kit Covid".
Paolo Zanotto, que propôs criar um gabinete das sombras para assessorar Bolsonaro na questão da covid-19, é docente e pesquisador do Instituto.
"O tratamento precoce com produtos farmacêuticos que constam do chamado 'Kit COVID19' é particularmente preocupante. Além de não existir comprovação científica de seus efeitos no tratamento em qualquer estágio da doença, o seu uso disseminado traz riscos à saúde das pessoas, podendo fragilizar esses indivíduos, caso sejam infectados pelo vírus SARS-Cov-2. Há evidências de que alguns desses produtos podem trazer maior risco de morte aos pacientes internados”, afirmou a Congregação do Instituto.
Os professores da Faculdade de Medicina, por sua vez, disseram:
"A Congregação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo apoia a representação do Prof. Caramelli quanto ao uso de medicamentos sem comprovação científica de eficácia contra COVID-19”.
A professora Alicia Kowaltovski, titular da Quimica da USP e da Academia Nacional de Ciências, organizou um abaixo assinado de apoio a Caramelli apenas com médicos vinculados a instituições universitárias. O texto já tem a adesão de mais de 1.000 profissionais.
Esses apoios a Bruno Caramelli serão juntados à representação protocolada no MPF, que gerou uma investigação preliminar e obrigou o Conselho Federal de Medicina (CFM) a se manifestar.
Num português sofrível, a entidade criticou médicos que se opõem à prescrição de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina,
“Chamamos a atenção ainda para o fato de que muitos ditos especialistas se arvoram de seus posicionamentos supostamente baseados na ciência, mas na visão deste CFM, sabe-se quase nada em relação à fisiopatologia, evolução e tratamento da doença (sic)”, diz o texto encaminhado em resposta à requisição do MPF.
Em outra manifestação, em 23 de abril, o presidente do CFM, Mauro Ribeiro, afirma:
"Caso os médicos utilizassem como parâmetro objetivo apenas a prescrição de medicamentos cientificamente comprovados para o caso, estariam de mãos atadas sem nada poder fazer”.
Caramelli, que já teve covid-19, diz que os médicos devem acolher os pacientes e trabalhar com terapêuticas que não passem a falsa impressão de que há remédio para a covid-19.
Há várias doenças em que o médico pouco ou nada pode fazer. Quem nunca ouviu um deles diagnosticar uma “virose” e mandar o paciente para a casa?
Mas por que, em relação à covid-19, a autarquia responsável pela prática médica no Brasil decidiu se posicionar e recomendar remédios que hoje se sabem ineficazes?
O CFM diz, em essência, que, diante de uma doença desconhecida, é preciso tentar alguma coisa.
Essa tentativa custou vidas, como a do jornalista Renan Antunes e da técnica de raio-X Jucicléia de Souza Lira (veja abaixo o documentário “A História Secreta da Cloroquina”).
Pode também ter custado vidas indiretamente, como as de pessoas que, acreditando na farsa do tratamento precoce, se expuseram ao risco de contaminação.
Quem ganhou com toda certeza foram fabricantes de remédios, como a Vitamedic, detentora da patente da ivermectina no Brasil.
A empresa faz parte do Grupo José Alves, que faturou R$ 2 bilhões em 2020. Num ano em que a economia encolheu 4,1%, o grupo cresceu 10%.
A Vitamedic admitiu à CPI da Covid que o vermífugo, indicado para piolho, teve um aumento de vendas na ordem de 1.230%.
E, ao contrário do que disse o mais conhecido garoto-propaganda do produto, o comentarista da CNN Alexandre Garcia, não salvou vidas.
No ano passado, a prefeitura de Porto Feliz distribuiu comprimidos de ivermectina de porta em porta num bairro pobre da cidade.
O aposentado Tito da Silva tomou e poucos dias depois contraiu o coronavírus, foi internado e morreu. “A ivermectina não funcionou”, diz a filha Roseli da Silva.
O procurador da república Ailton Benedito de Souza também ajudou a divulgar o produto, ao encaminhar para prefeituras a recomendação de médicos bolsonaristas de adoção do suposto tratamento precoce.
Ailton Benedito de Souza também investigou a Sociedade Brasileira de Infectologia, que se posicionou contra o uso do Kit Covid.
O procurador, que é próximo do procurador-geral Augusto Aras, é do MP de Goiânia, onde fica a sede do Grupo José Alves.
Pode ser só coincidência, já que Ailton Benedito é conhecido por defender a ideologia bolsonarista antes do início da pandemia, mas o Grupo José Alves se empenhou na defesa do tratamento precoce com métodos, digamos, heterodoxos.
O Centro Universitário Alves Faria (UniAlfa), que faz parte do Grupo José Alves, desenvolveu a plataforma na internet que atende a uma organização chamada Médicos pela Vida, aquela que se reuniu com Jair Bolsonaro em setembro do ano passado.
No encontro, além de Bolsonaro, o destaque foi o professor e pesquisador Paolo Zanotto, que se apresenta como virologista e foi orientador do mestrado e do doutorado de Átila Iamarino.
Paolo Zanotto disse, olhando para Bolsonaro, que os médicos presentes eram leões que precisavam ser liderados por um leão.
Ele colocou em dúvida a viabilidade das vacinas e defendeu o tratamento precoce.
A plataforma desenvolvida pela UniAlfa contém as Jornadas de defesa do tratamento precoce promovidas pela organização, das quais participaram, como palestrante, o próprio Zanotto e representante do Conselho de Medicina.
A seguir, o vídeo em que um integrante da ONG Médicos pela Vida admite o patrocínio da universidade, e o reitor desta, Carlos Trindade, explica cmo funciona a plataforma.
Na jornada de março promovida pela Associação Médicos Pela Vida, por exemplo, o vice-presidente do CFM, Emanuel Fortes, deveria falar sobre o "Ato Médico do Tratar - Um rápido olhar”.
Quem fez a palestra, no entanto, foi Fernando Pedrosa, do Conselho Regional de Medicina de Alagoas.
Zanotto falou em seguida. Nise Yamagushi também participou, assim como um médico que falou a respeito da experiência de Rancho Queimado, o município de 2.800 habitantes que o senador Luiz Carlos Heinze apresenta na CPI como exemplo da eficácia do tratamento precoce.
O caso de Porto Feliz, cidade do interior de São Paulo, também foi abordado nessas jornadas, embora já se saiba que lá a experiência do tratamento precoce fracassou.
De dois meses para cá, aumentou muito o número de mortos na cidade, apesar da farta distribuição de cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina.
Nesta terça-feira (13), o destaque do site da Associação Médicos pela Vida, desenvolvido pela UniAlfa, é uma nota de apoio a Paolo Zanotto, que foi duramente criticado na reunião que ocorreu pela manhã na Congregação do Instituto de Ciências Biomédicas.
Qual a credibilidade do Médicos pela Vida para defender essa estrela do Kit Covid?
A mesma que um vendedor de Coca-Cola tem para defender a fábrica do refrigerante. Aliás, o Grupo José Alves é dono da fábrica da Coca-Cola em Goiás.
Do refrigerante ao vermífugo, passando por instituições de ensino, o Grupo José Alves tem faturamento quase igual ao da Nike no Brasil.
No ano passado, ganhou 10% a mais não promovendo a saúde, mas um remédio que o próprio fabricante mundial, a Merck, disse não ter eficácia contra a covid.
Em 2019, a ivermectina gerou faturamento de R$ 44,4 milhões para o Grupo José Alves. Em 2020, foram R$ 409 milhões, alta de quase R$ 365 milhões, segundo apurou o jornal Valor.
Para o Grupo José Alves, profissionais como Paolo Zanotto e Alexandre Garcia valem ouro.
O problema para os negócios do conglomerado é a obstinação de profissionais comprometidos com a ciência, como Bruno Caramelli da USP.
Eles teimam em apresentar ao mundo o que a ciência revela: tratamento para covid-19 não existe. A prevenção é vacina, distanciamento social, máscara e higiene das mãos.
Fora disso, é charlatanismo, que em tempos de pandemia se revela uma excelente oportunidade para ganhar dinheiro.
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PS: Entrei em contato com o Grupo José Alves, mas até agora não houve retorno.
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