Che Guevara no Recife

Nesta sexta-feira, 9 de outubro, completam-se 53 anos do fuzilamento de Che Guevara na Bolívia

Che e Fidel em 1959
Che e Fidel em 1959


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Eu já havia começado a escrever um texto sobre a exclusão de mulheres e negros na ciência, quando chegou um email que mudou o meu rumo. Não posso nem devo dizer o nome da pessoa, mas algumas palavras da sua bela mensagem são dignas de conhecimento público: 

“Eu não sabia explicar a mim mesma a estranheza do sentimento ao perder uma pessoa querida. Quando comecei a ler A mais longa duração da juventude, logo no início do capítulo 2, não aguentei o aperto no peito, reli a página 21 várias vezes. Era exatamente daquele jeito que me senti. A falta de referência, esse não lugar que a surpresa da morte causa. Eu estava sem reflexão, agindo como uma espécie de autômato. 

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‘mergulhamos no espaço escuro com a consciência dilacerada, com a memória em terremoto’.

Sim, ‘a vida começa a partir de um instante fora do nascimento’.... Não conhecia Memória de caçador, do Turguêniev. Mas já fiz a compra. Obrigada pela dica – estendo meu agradecimento também ao Luiz do Carmo.

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Sobre o Luiz...  Como eu gostaria de ter conhecido alguém como ele. Sinceramente, que homem interessante. Que pessoa singular. Que amizade, a de vocês. Depois de uma rápida pesquisa sobre ele, de repente Luiz passou a ser alguém de carne e osso. E me dei conta que essa estória é, na verdade, uma história imersa na História”. 

Então parei tudo que vinha fazendo e me deixei parado a refletir sobre a vida e o romance. Aquela mensagem mudou o rumo e o programa para esta coluna. Então me dei conta de que nesta sexta-feira, 9 de outubro, completam-se 53 anos do fuzilamento de Che Guevara na Bolívia. Então vi que o melhor seria enviar para os leitores alguns trechos da passagem luminosa de Che Guevara no espírito e destinos da gente no Recife:

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“Logo ele, logo nós, logo todos os militantes de Ação Popular, todos que são contra a ditadura. ‘Na real’, como falam hoje os mais jovens, tão jovens quanto nós fomos, logo nós que nos queríamos tão heroicos, na hora do fogo estamos apavorados. Em nossos ouvidos e imaginação soam as trombetas que cantam Guevara na selva boliviana, os mais velhos recordam a epopeia do Exército Vermelho contra o nazismo, os maduros sabem da bravura do vietcongue, mas nós não somos o Exército Vermelho ou o vietcongue nessa hora de angústia. Luiz do Carmo tem os olhos arregalados, do lado de fora, no pátio da Celpe da João de Barros. Todos os colegas na repartição nos veem, mas que vão à puta que os pariu.  

- A família da minha namorada me disse – ele fala. – Eu estou na lista. Eu vou entrar nos cartazes de ‘Terroristas, procuram-se’. 

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- Absurdo, rapaz: você, terrorista... 

Mais que a imagem de Che me ocorre a cara dos terroristas nos cartazes das ruas........ 

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Naqueles anos da ditadura, o Pátio de São Pedro era um dos lugares da esquerda no Recife para conversar, misturado a populares e jovens de modos de ser alternativos. Com um belo casario, com a igreja de séculos, ali existiam bares para todos os gostos e paladares. Nas pedras do chão colonial, iluminadas e cheias de moças, rapazes e intelectuais, o Pátio era uma ilha de Cuba na imaginação dos que não conheciam a ilha. É espantoso, é trágico que não víssemos o controle policial sobre os santuários da esquerda, que julgávamos ser do nosso fechado conhecimento. Mas se não víamos o Big Brother a nos vigiar, não era por cegueira ou estupidez. Era a obnubilação que domina  os necessitados. Hoje sei, quando releio Os Sertões e contemplo com uma dor os sertanejos sendo mortos pelos soldados na tocaia, que os esperavam na vizinhança da única fonte d’água à margem do arraial. Morriam à bala antes de matarem a sede. Assim éramos nós em nossas ilhas que julgávamos a salvo da ordem fascista, no Cine Coliseu, na Livro 7, ou no Pátio de São Pedro no Recife. Ali estaria o ar livre, a exceção de um ambiente de sufoco e angústia.  Mas ali nos olhava bem a repressão, que nos esperava com acenos de hippies e jovens descolados, alternativos, até mesmo de falsos socialistas, de cabelos grandes, sandálias e bolsa a tiracolo. Nesse espaço deparei com Vargas pela primeira vez. Em Soledad no Recife, esse encontro passou por um filtro. Mas agora narro a experiência anterior à página do livro. 

Mesmo a olhos inexperientes, Vargas parecia um homem destinado ao sacrifício pela revolução. Isso vale dizer, ele deixava na gente a impressão de pureza de princípios e dedicação inteira a um comunismo ideal, que chegaria sem demora. Esse espírito de ardor revolucionário pude ver em outros militantes comunistas, mas nestes era de um modo discreto, quando não silencioso, em meio a homens comuns. E nisso, claro, havia uma diferença além da pessoa, porque vinha dos partidos e organizações que não adotavam a chamada guerrilha urbana. Mesmo nos comunistas mais velhos havia que se preservar para a grande marcha, como ensinava o camarada Mao. Nos jovens da guerrilha, de vanguarda, não. Havia que se incendiar a cidade, levantar um, dois, três Vietnãs, como pregava iluminado Che Guevara. A pessoa de Vargas, o seu heroísmo, o sentido da sua grandeza, eu só irei conhecer quase um ano depois. Agora, ali no Pátio de São Pedro, ganha vulto um indivíduo de traços ásperos, rosto com marcas de varíola, falando alto, sempre disposto a levar adiante uma contradição, apontar um ‘desvio’ na conversa. Olhando bem, essa era uma característica nossa, naqueles anos. Éramos jovens, pensávamos saber tudo, ter lido todos os livros fundamentais, que nos faziam discursar sobre a filosofia de Spinoza, e dos gregos ao surrealismo. Sempre com a última palavra, do ponto de vista das massas sublevadas. Mas Vargas era pior quando não estava a nosso favor, a nos flagrar uma ‘vacilação’ pequeno-burguesa, como nos acusava. 

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Lembro que em dado momento, depois de um dia na brutalidade burocrática da Celpe,    fiquei enternecido pelo sabor da cerveja, pelo encanto das pedras do chão do Pátio de São Pedro. Tão belas e harmônicas com o casario em torno, com a Igreja de São Pedro, eram as moças no conjunto de fêmeas acendendo os pobres corações, que senti vontade de abraçar o mundo, e não me contive: 

- Como era bom que todos pudessem beber cerveja.     

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Para quê falei? Por que a poesia ideal da necessidade, por que uma cervejada socialista sem o mercado real? Ao ouvir tal declaração utópica, Vargas respondeu contundente:

- Bom era se houvesse pão para todos!

O céu de Vargas era mais essencial, sei agora”. 

Aqui fico. Com um abraço fraterno aos leitores que nos honram com a sua leitura. Sem eles, jamais saberíamos da responsabilidade e algum valor do que escrevemos.

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