Chamar o pensamento de Simone de Beauvoir de demoníaco é flertar com a estupidez

Simone de Beauvoir, uma das importantes pensadoras do século XX, não fala do "ser mulher" como uma figura fisiológica ou biológica, mas como produto cultural, uma figura socialmente construída. É disso que se trata o fragmento do texto contido na prova de ciências humanas do ENEM

Simone de Beauvoir, uma das importantes pensadoras do século XX, não fala do "ser mulher" como uma figura fisiológica ou biológica, mas como produto cultural, uma figura socialmente construída. É disso que se trata o fragmento do texto contido na prova de ciências humanas do ENEM
Simone de Beauvoir, uma das importantes pensadoras do século XX, não fala do "ser mulher" como uma figura fisiológica ou biológica, mas como produto cultural, uma figura socialmente construída. É disso que se trata o fragmento do texto contido na prova de ciências humanas do ENEM (Foto: Pedro Maciel)


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Em mais um episódio constrangedor da política brasileira, a Câmara de vereadores de Campinas (minha cidade natal, cidade natal de meus filhos, pais, irmãs, sobrinhos e sobrinhas, de praticamente toda minha família) aprovou uma moção protestando contra uma questão na prova do Enem, a qual incluía trecho de um texto do livro “O Segundo Sexo”, da filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir.

O autor da moção, o vereador Campos Filho (DEM), exige que o ministério anule a questão, por, segundo ele, “afrontar esse conjunto de fundamentos jurídicos e o próprio Estado Democrático de Direito”, trata-se de estultice do Vereador e aquela casa de leis não poderia impor à cidade e à sua população.

Bem, Simone de Beauvoir, uma das importantes pensadoras do século XX, não fala do "ser mulher" como uma figura fisiológica ou biológica, mas como produto cultural, uma figura socialmente construída. É disso que se trata o fragmento do texto contido na prova de ciências humanas do ENEM, não se tratava de nada "demoníaco"... Afirmar que esse pensamento é demoníaco flerta com a estupidez.

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O Vereador Campos Filho, sempre tão educado, deveria voltar a ler a bíblia. Há um texto do Gênesis, verdadeiramente, revolucionário, pois afirma a igualdade dos sexos e sua origem divina, onde se afirma de forma contundente que Deus criou a humanidade à sua imagem, criou-os homem e mulher (Gn 1,27).

E no Novo Testamento encontramos em São Paulo a formulação da igual dignidade dos sexos: “não há homem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Num outro ponto diz claramente: “em Cristo não há mulher sem homem nem homem sem mulher; como é verdade que a mulher procede do homem, é também verdade que o homem procede da mulher e tudo vem de Deus” (1Cor 11,12).

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Estupidez ou mau-caratismo do vereador que usou a expressão, pois, gênero não é o mesmo que sexo, o sexo é biológico, nascemos com o sexo, já o gênero é uma construção social. Análise esta, pontuada nos estudos das ciências humanas e da sociedade como a Sociologia, a História por exemplo. Portanto a propositura deste conteúdo em avaliações como o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) mostra consonância com a realidade social brasileira e internacional, sua historicidade e contemporaneidade.

O livro de Simone de Beauvoir deveria ser lido não por feministas apenas, mas por mulheres, homens e todas as pessoas que, de um modo ou de outro, estão marcados pela questão de gênero, porque se trata de um livro básico, que nos ensina a pensar sobre as desigualdades e privilégios de gênero, aqueles que experimentamos como os mais naturais sem perceber como nos marcam.

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É verdade também que o Papa Francisco, recentemente, falou da ideologia de gênero como de uma "colonização ideológica", como "expressão de frustração", como um apagamento da diferença sexual, essa é uma reflexão. Ele não fala em nada demoníaco, essa é a verdade, esse é o debate.

Mas a diferença sexual, da qual fala o Papa Francisco, é concebida como aquela dada na natureza, objetiva, sem discussão, tem-se de entender esse contexto, a reflexão do Papa nesse sentido está correta, mas não considera, não trata da questão de gênero na forma do texto posto à reflexão.

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Há ainda Joseph Ratzinger que escreveu, faz mais de 10 anos, na Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a "colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo" que o gênero é inimigo, uma forma de feminismo hostil. Ratzinger trata Simone de Beauvoir (e a sua frase "não se nasce mulher, torna-se") da mesma forma...

Mas Ratzinger não conta como uma posição cristã genuína, pois foi ele que baniu Leonardo Boff e a Teoria da Libertação e privou milhões de pessoas da ação cristã, da generosidade humana e sepultou orientação da Igreja Católica correta do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, afastando a Igreja Católica dos pobres.

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Quem quer ser intelectualmente honesto tem de reconhecer contradições na posição da Igreja, afinal o Papa e a Igreja, aceitam o progresso e as mudanças na sociedade, mas tem dificuldade de reconhecer a mudança das relações entre os humanos; eles podem aceitar, na misericórdia, os homossexuais, mas paradoxalmente não aceitam a comunidade LGBT; falam do inegável valor das mulheres, criticam a violência contra elas, mas não reconhecem a sua autodeterminação.

Ninguém precisa concordar com Simone de Beauvoir ou com a Igreja, mas para discordar é fundamental honestidade, tem-se de usar o argumento intelectual correto, no ambiente adequado, fora desses não se deve perder tempos com a estupidez humana, ademais “O ser inteiro mas inacabado busca acabamento e completude. Nesta busca encontra Deus. Deus é o nome para simbolizar aquela terníssima Realidade e aquele Sentido amoroso, capaz de realizar infinitamente o ser humano. Portanto, Deus só tem sentido se irromper da própria estrutura desejante do ser humano”, conforme ensina Leonardo Boff.

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A ainda um texto de Renan Figueiredo Menezes que propõe uma reflexão sobre o feminismo a partir da análise da personagem central da obra Antígona de Sófocles (496 a.C – 406 a.C.). O Autor parte dos livros: “O rosto materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminismo e suas formas religiosas” de Leonardo Boff e “O Segundo Sexo”, de Simone Beauvoir e enfocando a forte presença do feminismo e a colaboração dos personagens secundários, Créon, Coro e Ismênia, dentro da tragédia Antígona. Esse texro poderia (e deveria) ser lido pelos Vereadores da cidade de Campinas ou, se não puderem ler, alguém poderia ler para eles antes de votações que expõe a cidade e os campineiros a constrangimento nacional e até internacional.

Pedro Benedito Maciel Neto, 51, advogado, sócio da MACIEL NETO ADVOCACIA, autor de “Reflexões sobre o estudo do Direito”, Ed. Komedi, 2007.

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