CFM violou ética médica ao endossar cloroquina e colocar vida dos brasileiros em risco, diz cardiologista
Bruno Caramelli trava uma luta quase solitária para que o Ministério Público Federal investigue e puna o Conselho Federal de Medicina por endossar o kit covid, relata Joaquim de Carvalho
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No futuro, quando estiver pacificado o entendimento de que a cloroquina foi a droga que ajudou a matar mais brasileiros durante a pandemia do coronavírus, o nome de um médico terá que ser lembrado pela coragem de denunciar a farsa e, mais do que isso, enfrentar sozinho o Conselho Federal de Medicina (CFM), instituição a que está vinculado.
Bruno Caramelli, professor de cardiologia da USP e médico do Instituto do Coração em São Paulo, protocolou há cerca de dois meses representação no Ministério Público Federal contra os médicos que dirigem a sua entidade de classe.
Caramelli pediu que os procuradores instaurem inquérito civil, "a fim de apurar a responsabilidade civil, administrativa e/ou penal da Diretoria do Conselho Federal de Medicina”.
Ao mesmo tempo, ele iniciou um abaixo-assinado para pressionar o Ministério Público Federal a não deixar a representação na gaveta.
Em pouco mais de dois meses, conseguiu cerca de 54 mil apoios. Está próximo da meta, que é de 75 mil assinaturas.
Caramelli não se conforma com o aval que o CFM deu ao chamado “tratamento precoce”, que tem em Jair Bolsonaro o grande defensor.
Na representação, de 24 páginas, descreve como o Conselho se aliou a Bolsonaro, na estratégia deste de dar prioridade ao uso de remédios sem eficácia comprovada no combate à covid-19.
No dia 21 de março do ano passado, Bolsonaro mencionou pela primeira vez a cloroquina, ao dizer que o laboratório do Exército aumentaria a produção do medicamento.
Vinte e cinco dias depois, em 16 de abril, o CFM elaborou parecer, de autoria do seu presidente, Mauro Ribeiro, que autoriza os médicos a usarem a cloroquina (ou hidroxicloroquina, composto derivado daquela) em pacientes com sintomas leves.
Uma semana depois, o presidente do CFM foi recebido por Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, na companhia do então ministro da Saúde, Nélson Teich, para entregar o parecer em mãos.
Até então, o uso em casos graves já ocorria nos hospitais, enquadrado na modalidade “compassiva”, ou seja, como um dos últimos recursos em pacientes à beira do óbito.
Bolsonaro, por sua vez, ao defender a cloroquina para casos leves, ecoava Donald Trump, que, dois dias antes, havia anunciado que a cloroquina seria usada em fase experimental nos EUA.
O anúncio de Trump foi feito ao lado de Stephen Hahn, da FDA, a Anvisa norte-americana. A fala fez disparar a busca pelo termo “cloroquina" no Google.
No Brasil, quando Bolsonaro mencionou o remédio, ocorreu o mesmo fenômeno: busca recorde pelo termo cloroquina e corrida às farmácias, onde o estoque de medicamento praticamente zerou.
Caramelli lembra que a “fama” da cloroquina tinha surgido na França, a partir de um estudo coordenado pelo médico Didier Raoult.
Algumas semanas, no entanto, bastaram para demonstrar que a pesquisa era inconsistente, pois levava em consideração a evolução da doença em pacientes que tomaram o medicamento, mas não havia comparação com um grupo de doentes que não haviam tomado cloroquina.
Em junho do ano passado, diante das evidências de que o remédio era ineficaz, atestadas por outros estudos, o FDA proibiu o uso da cloroquina para tratamento de covid-19 nos EUA.
E ainda alertou que a cloroquina pode ter efeitos colaterais capazes de levar a óbito, como o médico Caramelli comprovou em sua atividade profissional no Incor, que faz parte do Hospital das Clínicas (HC).
"Ao longo de 37 anos de medicina, eu tinha tratado de três pacientes com arritmia com cloroquina. Em quatro meses no HC, no início da pandemia, eu vi o mesmo tanto. E um paciente morreu e era arritmia grave. No Hospital das Clínicas, ninguém dá cloroquina. Os pacientes vinham de outros hospitais, inclusive de campanha, tomando cloroquina e a gente suspendia”, relata.
Se o FDA brecou a experiência assim que surgiram as evidências de que o remédio poderia matar, no Brasil o CFM ficou em silêncio. “Um ano depois editada a norma, o Conselho não reviu o parecer. É inadmissível. E digo isso como médico e como cidadão”, afirma Caramelli.
A omissão do CFM tem um efeito prático benéfico para que os que se aliaram a Bolsonaro: médicos que prescrevem a cloroquina não poderão sofrer sanções da entidade de classe caso algum de seus pacientes morra ou tenha sequelas graves.
Como existe esse parecer, a prescrição do medicamento formalmente não será considerada erro médico. Para Caramelli, é um absurdo sem tamanho e esta é a razão de ter se insurgido.
“Está no código de ética: eu usar um medicamento que não tenha eficácia comprovada, para o qual não existe o equilíbrio entre segurança e eficácia, é um erro. Dizer que tomar o remédio não significa risco, pois há muita gente tomando e o máximo que pode acontecer é não acontecer nada, não está correto. Existe efeito colateral”, diz.
Caramelli foi um dos primeiros brasileiros diagnosticados com covid-19. Ele teve a doença em 16 de março do ano passado e os sintomas não foram leves. Teve pneumonia bilateral, febre alta, dor de cabeça muito forte e não comia (emagreceu 3 quilos e meio).
"O mais difícil foi, entretanto, conviver com o medo de não sobreviver, que me retornava cada vez que via na TV o número de mortos ou quando eu soube que meu filho disse que achava que eu ia morrer”, conta no texto em que pede apoio ao abaixo-assinado.
“Me curei sem tomar cloroquina e ivermectina”, disse. Então o que o curou? "Eu costumo dizer que foi o capeletti in brodo preparado pela minha mulher”, afirmou. Era a única refeição que conseguia fazer.
Caramelli faz o relato para desmontar a farsa de que os medicamentos prescritos por Bolsonaro têm alguma eficácia.
"A atual situação que estamos vivendo – com um drástico aumento de óbitos e contaminações – somente atesta que a propagação e a propaganda de uma inexistente cura para a COVID-19 levaram ao abrandamento das medidas efetivas de combate, as quais já demonstraram impacto positivo frente à doença”, destaca na representação entregue ao MPF.
Para ele, ao endossar a cloroquina, o CFM viola o código de ética, o que é um contrassenso: é o Conselho que tem o dever legal de impedir que os médicos cometam abusos.
"A ausência de posicionamento firme do Conselho Federal de Medicina, ao se quedar silente e não repudiar a recomendação do tratamento precoce sem evidências científicas, com a utilização medicamentosa da hidroxicloroquina para a COVID-19, configura patente afronta ao código de ética médica. Que o Conselho Federal de Medicina tem o dever legal de preservar”, afirmou na representação ao MPF.
Dois meses depois de denunciar o CFM por violação ética, Caramelli já não está mais sozinho. Depois que a representação já tramitava, outros 29 médicos assinaram a petição.
Esse número representa 0,0058% dos médicos no Brasil. É muito pouco, mas é melhor do que andar sozinho ou como Dom Quixote, que só tinha Sancho Pança como parceiro.
O apoio a Bruno Caramelli precisa vir de fora da corporação médica. O CFM, que tem poder para cassar registros ou impor outras sanções a seus inscritos, demostrou na prática cumplicidade com Bolsonaro.
Que médico terá coragem de se levantar contra? Bruno e outros 29 se levantaram e parecem ter a firme convicção de que, cedo ou tarde, a verdade prevalecerá.
"Pode ser exagerada, mas nunca se quebra e sempre vem à tona”, já dizia Dom Quixote a Sancho Pança a respeito da verdade.
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PS: O Conselho Federal de Medicina foi procurado, mas não quis se manifestar. O Ministério Público Federal, chefiado por Augusto Aras, ainda não abriu inquérito civil, mas solicitou informações à entidade de classe dos médicos.
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