Certa arte

Neste momento em que a cultura nacional está sob ataque cerrado e violento, em todas as frentes, presto com esta crônica minha pequena homenagem ao cineasta brasileiro Bruno Barreto, que soube enquadrar e recriar, com excepcional sensibilidade, o lindo poema de Elizabeth Bishop

Filme "Flores Raras", de Bruno Barreto
Filme "Flores Raras", de Bruno Barreto (Foto: Divulgação)


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Vi há alguns anos, quando ainda morava em Xangai, o filme “Flores raras”, dirigido por Bruno Barreto, com Glória Pires. Como foi bom ver um grande filme brasileiro estando tão distante do nosso querido país! O filme é a estória do atribulado romance entre a paisagista e urbanista Lotta Macedo Soares, uma das responsáveis pelo planejamento do Aterro e Parque do Flamengo, e a poeta americana Elizabeth Bishop.

Conversando recentemente com minha mãe, lembrei do filme e do poema que enquadra o filme, um poema lindo, lindo, da Elizabeth, chamado “One art” (“Certa arte”). E resolvi reler o poema e rever o filme.  

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Dessa vez, gostei ainda mais do que da primeira. Bruno Barreto mostra várias coisas bonitas – o maravilhoso Rio de Janeiro dos anos 1950, por exemplo –, mas a mais bonita é a maneira como ele abre o filme com esse poema, ainda incompleto e embrionário, e termina com ele, acabado e comovente. Fica subentendido que Elizabeth só pôde concluir o poema, que trata da arte de perder, depois de ter vivenciado e sofrido a perda – a perda catastrófica da pessoa amada. 

O poema é este:

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One Art

The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

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Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

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I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

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—Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

O meu gentil leitor não tem obrigação nenhuma de saber inglês. Assim, traduzo, sacrificando, porém, a rima:

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Certa arte

A arte de perder não é difícil de aprender;
tantas coisas parecem repletas da intenção
de serem perdidas que sua perda não é nenhum desastre.

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Perca algo todo dia. Aceite a afobação
de chaves perdidas, a hora mal-empregada.
A arte de perder não é difícil de aprender.

Pratique então perder mais fundo, perder mais rápido:
lugares, e nomes, e para onde você queria viajar.
A arte de perder não é difícil de aprender.

Perdi o relógio de pulso da minha mãe. E olhe só! a minha última,
ou penúltima, de três casas queridas, se foi.
A arte de perder não é difícil de aprender.

Perdi duas cidades, lindas. E, mais ainda,
reinados que tinha, dois rios, um continente.
Sinto falta deles, mas não foi um desastre.

-- Mesmo perder você (a voz alegre, um gesto
que amo) não terei mentido. É evidente
a arte de perder não é tão difícil de aprender
embora pareça (Escreva!) um desastre.

 

Poesia é, por definição, aquilo que resiste, heroica e obstinadamente, à tradução. Perder a rima, a musicalidade da rima, é uma perda irreparável, eu sei. Há quem questione se vale a pena traduzir assim. Encontrei na internet algumas traduções do poema, que procuram recriar as rimas em português, mas são desastrosas. Melhor nem ter tentado recriá-las. Creio que consegui preservar, pelo menos, o ritmo e o sentido. 

O poema de Bishop é uma pequena obra-prima, não é mesmo? A força das palavras! A sua capacidade de evocar o sofrimento, de estilizá-lo e torná-lo, assim, um pouco mais suportável! A linguagem é simples, como uma conversa. Mas vai num crescendo, e vamos percebendo, aos poucos, que a arte de perder, ao contrário do que se proclama insistentemente, em refrão repetido a cada verso, não é nada fácil de aprender.  

As perdas no início são pequenas, triviais, “chaves”, “a hora mal-empregada”. Em seguida, “lugares”, “nomes”, e “para onde se queria viajar”. Mas aí vem a referência à mãe, e às casas queridas, que aumentam a intensidade emocional. Depois aumenta a amplitude: a perda é de cidades inteiras, reinados, continentes – para culminar na perda da pessoa amada.  

Repare, leitor, que no último verso, a inserção quase imperceptível da palavra “tão” no meio do refrão – “a arte de perder não é difícil de aprender” se torna “não é tão difícil de aprender” – prepara o momento final, de impacto, que revela toda a insinceridade – ainda que mantendo, já sem convicção, a negação insincera – “embora pareça (Escreva!) um desastre”.  

Neste momento em que a cultura nacional está sob ataque cerrado e violento, em todas as frentes, presto com esta crônica minha pequena homenagem ao cineasta brasileiro Bruno Barreto, que soube enquadrar e recriar, com excepcional sensibilidade, o lindo poema de Elizabeth Bishop. Essa é, afinal, uma das grandes contribuições, entre tantas, que o cinema pode dar – abrir portas, de par em par, para as outras artes, a poesia, a literatura, a pintura, a música – torná-las conhecidas e amadas por quem talvez nem chegasse a encontrá-las um dia. 

Richard Wagner falava, no século 19, da sua ópera dramática como Gesamtkunstwerk, como a “arte total”, que reuniria todas as artes. Mas o século 20 mostraria que é o cinema, mais do que qualquer outra, a verdadeira arte total.

***Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 20 de agosto de 2021.

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