Censores em ação
"O livro Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura, de Robert Darnton, discorre sobre diferentes momentos em que a censura interferiu e moldou a expressão literária. (...) em Salvador, a cidade mais negra do Brasil, uma professora é afastada da sala de aula por, acredite você, indicar aos seus alunos e alunas a indispensável leitura do livro Olhos d’água (2016), de Conceição Evaristo"
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Publicado no Brasil no ano de 2016, com tradução de Rubens Figueiredo, o livro Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura, de Robert Darnton, discorre sobre diferentes momentos em que a censura interferiu e moldou a expressão literária. O livro está dividido em três partes: a primeira, intitulada “A França dos Bourbon: privilégio e repressão” discorre sobre a França do século XVIII, onde “fazer parte do corpo de censores do rei era motivo de prestígio e orgulho”.
A segunda parte, por sua vez, é “Índia britânica: liberalismo e imperialismo”. Estamos aí em meados do século XIX, quando “para participar do grupo de censores do governo era preciso possuir extrema erudição, mas sobretudo estar alinhado à moralidade defendida pela realeza”. Na terceira parte, chamada de “Alemanha Oriental comunista”, o autor afirma que lá “a repressão era tão onipresente que se instaurou na mente dos escritores na forma de autocensura, com sequelas visíveis para a literatura nacional”.
Ao longo da história da humanidade, a cultura raras vezes não esteve sob ataque. Isso se dá, uma vez que as artes historicamente se contrapõem aos governos autoritários. Não à toa a Alemanha nazista realizou uma grande queima de livros no ano de 1933, destruindo tudo aquilo que fosse crítico ou se desviasse dos padrões impostos pelo regime nazista. Na sua estupidez, acreditavam eles que com a tal bücherverbrennung o conhecimento seria dizimado e, assim, tudo o mais fluiria. Certamente, que não funcionou. Contudo, resquícios do desejo de censurar as artes e coibir a liberdade de expressão, vez ou outra voltam para assombrar as novas gerações.
A perseguição às artes, especificamente a literatura, não reconhece nem tempo nem espaço. Os censores, hidrófobos que são, babam de vontade de proibir, mutilar, coibir e cercear aquilo que não conseguem compreender. Para tanto, recorrem aos expedientes da tradição, da religião, da família e dos bons costumes; seja lá o que isso queira dizer. E eis que me vem à mente o fatídico ano de 2012, quando um dos nossos maiores escritores, Dalton Trevisan, foi banido de um determinado vestibular. A obra Violetas e pavões, de 2009, constava na lista de leituras indicadas para a prova de português e literatura, mas teve que ser retirada devido a manifestações contrárias. Os censores na ocasião eram pais, professores de cursinhos e entidades religiosas. Ali, o vampiro do fascismo já arreganhava a boca e mostrava suas presas.
Oito anos depois, “no país negro e racista / no coração da América Latina”, como diz Adriana Calcanhoto; desta vez em Salvador, a cidade mais negra do Brasil, uma professora é afastada da sala de aula por, acredite você, indicar aos seus alunos e alunas a indispensável leitura do livro Olhos d’água (2016), de Conceição Evaristo. Em nota, a empresa justificou o afastamento da mestra, alegando que os familiares se sentiram desconfortáveis com a obra. Em notas protocolares assim, as empresas dizem o que bem querem, para não perderem seus clientes. O nome disso é comércio. Educação é outra coisa.
O que houve no caso em questão nada tem a ver com os “vocabulários presentes na obra”, mas com o racismo estrutural, que discrimina a literatura de autores negros. Preconceitos como este jamais deveria andar pelos corredores e salas de qualquer espaço que se diga “de educação”. A decisão da empresa, no entanto, se dá em conformidade com pais e alunos, pois, conforme noticiou a mídia, alunos e alunas da escola disseram não desejar ler Olhos d’água, uma vez que “não vamos lidar com uma dor que não é nossa”. Certamente, não é deles também a dor do extermínio da juventude pobre brasileira, a miséria, os presídios lotados de pobres, pretos e miseráveis ou as recorrentes chacinas nas comunidades. Não é deles a dor que uma mãe sente ao tentar retirar de um mangue, o corpo metralhado do filho. Pessoas assim, como Ponciá Vicêncio, personagem que dá nome a outra obra de Conceição Evaristo, gostam do vazio, da ausência na qual se abrigam, desconhecendo-se e tornando-se alheios aos seus próprios eus, à própria vida.
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