Celso Marconi, 90 anos de rebeldia e cinema
A ausência do recifense Celso Marconi na Wikipédia é, ao mesmo tempo, injusta e descuidada
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Entre os grandes personagens de 23 de agosto, a Wikipédia indica Gene Kelly, Nelson Rodrigues, Tônia Carrero, Rita Pavone, Rodolfo Valentino, Vicente Celestino e Alberto Cavalcanti. Mas não registra, em uma só linha, um dos mais importantes críticos de cinema do Brasil, o recifense Celso Marconi. Essa ausência na enciclopédia é, ao mesmo tempo, injusta e descuidada, para dizer o mínimo. Então, em breves linhas, tento um curta dos seus 90 anos.
Sobre o aniversariante desse domingo já publiquei o texto “Celso Marconi, uma vida de cinema”. Por sinal, esse artigo circula no sábado entre amigos do mestre de português Diógenes Afonso no WhatsApp.
Nesse texto, eu lembrei que Celso Marconi vinha sendo o crítico brasileiro de cinema com maior longevidade. Nos seus 90 anos agora, tenho a certeza de que ele é o jornalista com mais tempo de crítica de cinema não só no Brasil, mas em todo o mundo. O paradoxo, ou paradoxal, é que na sua idade ele é o mais jovem crítico de cinema, pela expressão maravilhosa, que nos desconcerta, em meio a um texto como aqui:
“Face a Face é melhor ser visto num aparelho individual, numa TV grande, mas de maneira que você possa parar quando estiver cansado, prostrado, e sair para comer um chocolate ou tomar um café antes de continuar. Penso que, se estivesse vendo esse filme de Ernst Ingmar Bergman hoje numa sala de cinema, eu gritaria para que parassem pra gente descansar um pouco…
Certamente hoje são poucas as pessoas que conhecem o cinema de Ingmar Bergman e isso se justifica pelo fato de que o atual presidente do País não tem a menor noção do que é Cultura, e sem dúvida nunca viu nem um filme de Ingrid Bergman – quanto mais de Ingmar! É uma pena. Com tantos elementos novos e fundamentais para mudarmos a nossa vida e podermos conhecer melhor o que é uma vida amadurecida, é lamentável que estejamos vivendo esse dilema de moralismos inúteis”
Nele, o que não é reflexão mais profunda é rebeldia, que não se contém nem se contenta. E com ele temos crescido, desde os anos 1970, quando Celso Marconi já era um crítico consagrado, guru de nossa estética de cinema. Lembro, de modo claro, que nós corríamos para aquelas críticas no Jornal do Commercio que nos revelavam o valor da programação do Cine de Arte Coliseu e de outros cinemas. Que oásis! Bebíamos o que ele nos revelava naquele deserto da ditadura. Eram linhas que faziam a cabeça de estudantes contra a ditadura e das novas gerações no Recife. Era uma alegria imensa, nos fins de semana, saber o que o Coliseu nos reservava, a partir do texto de Celso Marconi. Foi com ele que descobrimos Buñuel, artista que nos deixava tontos antes do bar, como destaco no começo do livro Soledad no Recife:
“Eu a vi primeiro em uma noite de sexta-feira de carnaval. Fossem outras circunstâncias, diria que a visão de Soledad, naquela sexta-feira de 1972, dava na gente a vontade de cantar. Mas eu a vi, como se fosse a primeira vez, quando saíamos do Coliseu, o cinema de arte daqueles tempos no Recife. Vi-a, olhei-a e voltei a olhá-la por impulso, porque a sua pessoa assim exigia, mas logo depois tornei a mim mesmo, tonto que eu estava ainda com as imagens do filme. Em um lago que já não estava tranquilo, perturbado a sua visão me deixou. Assim como muitos anos depois, quando saí de uma exposição de gravuras de Goya, quando saí daqueles desenhos, daquele homem metade troco de árvore, metade gente, eu me encontrava com dificuldade de voltar ao cotidiano, ao mundo normal, alienado, como dizíamos então. Saíamos do cinema eu e Ivan, ao fim do mal digerido O Anjo Exterminador. Imagens estranhas e invasoras assaltavam a gente”.
Lá no início deste artigo, eu escrevi que Celso Marconi é um jovem. E não só na sua expressão de crítico, esclareço agora. O moço que ele é nos seus 90 anos pode ser notado também nos poemas eróticos que publica no Face, porque o seu desejo de vida é permanente. Como aqui:
“A PUTA E O POETA
Sonhei que era um poeta russo
E vivia nos tempos dos soviéticos
Com uma bela puta também russa
E tinha muito prazer em trepar com ela
Que era linda e branca azulada
Tinha um ar de tristeza que ameaçava
Qualquer um que trepava com ela
Mas o seu corpo era perfeito para a função
E ela adorava que eu lesse minhas poesias
O que nem sempre era aceito pelos soviéticos
Que implicavam com um sujeito mesmo poeta
Viver comendo por conta de uma puta
Pois nós comíamos e sempre tínhamos
Borsht, solyanka, blini, frango à Kiev,
Pilmeni ou salada olivier à mesa
Que a puta fazia com todo gosto
E não tinha estória de não comer
Só porque era puta ou era poeta
E fomos vivendo com muita alegria
O pior porém era quando queríamos mudar de cidade
Sair de Vladivostoki para Irkutski na Sibéria
Pois os guardas dos aeroportos ou rodoviárias
Mesmo que achassem a gente bonitos
Não aceitavam que o poeta não trabalhasse e
Ficasse comendo com o que a puta ganhava
EU QUERO O PRAZER
As religiões condenam o prazer
E inclusive não querem o desejo
Você tem que sentar e esperar
Que todo o desejo se esvoace
Se a religião não quer o desejo
Por que então nascemos com essa
Possibilidade?
O desejo de prazer fujamos
Carnaval dos carnavais
Como vamos fingir o não desejo?
A natureza nos pune
Mas ao contrário nos alegra
Quando concretizamos um desejo”
Nos mais recentes dias, ele me telefona às vezes ansioso, às vezes pessimista. E no telefone aqui e ali me fala verdades para as quais eu não tenho resposta. Como neste desabafo, que cito de memória:
-Eu não sabia que envelhecer era tão complicado. É muito difícil viver muito.
Responder o quê? Não adianta tentar um consolo diante da reflexão amarga. Mas eu procuro um consolo, ainda assim:
- Celso, olhe, você é homem de sorte. Nesta pandemia, você pode se isolar, sem a preocupação de ter de ir pra rua ganhar a vida...
“Ganhar a vida...” saiu sem querer. Ao que Celso me responde:
- Mas a minha vista está cada vez pior. As imagens se confundem, se misturam...
E aqui, mais uma vez, Celso Marconi é um homem de cinema. As imagens se confundem, e ele só quer a vista para ver filmes em meios novos da internet, como tem feito nos instantes de trégua. E também quer vista para ler, porque é um leitor sofisticado, que vai da filosofia de Hegel aos romances japoneses. Em textos de crítica, ele chega a comparar a obra escrita com a nova obra filmada. Quem mais faz isso? Então, depois dessas trincheiras, a gente conversa muito, ele sorri, gargalha, o que me deixa bem com a sua alegria, porque consegui diminuir um pouco o seu desconforto.
De outras vezes, com mais frequência, ele me liga e pergunto a ele;
- Tudo bem, Celso?
- Assim, mais ou menos... Eu estou muito angustiado.
- Ah, Celso, todos estamos. Não tenha dúvida.
- Nessa madrugada, eu não consegui dormir. Aí chamei Trudy, gritei o nome dela (Trudy é Gertrud, sua sobrinha). Ela veio e me deu meio comprimido pra serenar a angústia. Dormi.
Mas neste último fim de semana ele me ligou para anunciar um novo ciclo da sua vida:
- Luiz Joaquim (o seu biógrafo) me avisou que a biografia vai ser lançada na próxima sexta-feira.
- Sério? Arretado, rapaz!
- Está na minha página do Face.
Então sabemos da biografia lançada hoje: “Celso Marconi, o senhor do tempo”, que recomendo como uma leitura sobre um intelectual que nos inspira. O anúncio está aqui.
Agora, para encerrar, lembro um certo domingo. Almoçando em sua casa, eu lhe disse que, por favor, não viesse me agradecer nada para o mínimo serviço que faço em servir de ponte entre a sua criação e o fundamental sítio Vermelho. E lhe falei, sob o calor da cachaça: “Celso, para mim você é uma esperança de que um dia eu continue produtivo assim, feito você, quando eu tiver, se alcançar, mais idade. Eu quero ser feito você”.
Ele riu muito, mas é verdade. Se estivéssemos num bar, eu lhe faria um brinde hoje. Porque assim é, assim tem sido Celso Marconi, de ídolo na juventude dos anos 70 a ídolo na maturidade deste 2020. A sua vida e crítica são um longo filme, que continua. Mudamos todos, mas guardamos, creio, o caráter do que somos. Para toda geração que cresceu sob as suas luzes, como gostaríamos de ser à semelhança de Celso Marconi. Ele transformou o cinema em sua vida real. O filme passa, mas não a sua memória.
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